25 de jun. de 2012

Anarquia ontológica em poucas palavras - Hakim Bey


Anarquia ontológica em poucas palavras

Posto que absolutamente nada pode ser pronunciado com alguma certeza real acerca da “verdadeira natureza das coisas”, todos os projeto (como disse Nietzsche) só podem estar “baseados em nada”. E ainda assim deve haver um projeto – ainda que seja só porque nos resistimos a ser categorizados como “nada”. A partir do nada haveremos algo: o Levante, a revolta contra todo o que proclama: “A natureza das Coisas é isso e aquilo”. Estamos em desacordo, somos antinaturais, somos menos que nada ante os olhos da Lei: Lei Divina, Lei Natural ou Lei Social, escolha a que quiser. A partir do nada imaginaremos nossos valores, e por este ato de invenção viveremos.

Enquanto isso meditamos sobre o nada, e nos damos conta de que ainda não pode ser definido, a pesar de tudo, paradoxalmente podemos dizer algo sobre ele (inclusive ainda que só seja metaforicamente): - parece ser um “caos”. Como mito antigo e como “nova ciência” igualmente, o caos está no coração de nosso projeto. A grande serpente (Tiamat, Píton, Leviatã), o Caos original de Hesíodo, preside o vasto e largo sonho do Paleolítico – antes de todos os reis, sacerdotes, agentes da Ordem, a História, a Hierarquia, a Lei. “Nada” começa a tomar uma cara – o suave, sem rasgos, cara-de-ovo ou abóbora do Sr. Hun-Tun, o caos-como-converter-se, o caos-como-excesso, a generosa efusão do nada dentro de algo.

Em efeito, o caos é vida. Toda confusão, toda revolta de calor, toda urgência protoplásmica, todo movimento é o caos. Deste ponto de vista, a Ordem aparece como morte, cessação, cristalização, ciência, alienação.


Os anarquistas tem proclamado durante anos que “a anarquia não é o caos”. Inclusive o anarquismo parece querer uma lei natural, uma moralidade interior e inata na matéria, um mito enquanto enteléquia ou propósito-de-ser. Não melhores que os Cristãos neste aspecto, nisso acreditava Nietzsche – radicais só no profundo ressentimento. O anarquismo disse que “o Estado deveria ser abolido” só para instituir uma nova forma de ordem mais radical em seu lugar. A Anarquia Ontológica replica em troca que nenhum “estado” pode “existir” no caos, que todas as afirmações ontológicas são espúrias exceto a afirmação do caos (que contudo é indeterminado), e por tanto que o ato de governar de qualquer tipo é impossível. “O caos nunca morreu”. Qualquer forma de “ordem” que não havíamos imaginado e produzido direta e espontaneamente em pura “liberdade existencial” para nossos próprios propósitos celebrativos é uma ilusão.

Desde modo, as ilusões podem matar. Imagens de castigo rodam o sonho da Ordem. A Anarquia Ontológica propõe que despertemos e criemos nosso próprio dia – inclusive na sombra do Estado, esse gigante postulado que dorme, e cujos sonhos de Ordem meta-estatizam como espasmos de violência espetacular.

A única força bastante significativa para facilitar nosso ato de criação parece ser o desejo, ou como Charles Fourier o chamou, a “Paixão”. Igual como Caos e Eros (junto com a Terra e a Velha Noite) são as primeiras deidades de Hesíodo, assim também nenhuma empresa humana ocorre fora de seu cosmogênico círculo de atração.

A lógica da Paixão leva a conclusão de que todos os “estados” são impossíveis, todas as “ordens” ilusórias, exceto as do desejo. Não há ser, só converter-se – daí que o único governo viável seja o do amor, ou a “atração”. A Civilização meramente se oculta a si mesmo – detrás de uma fina cobertura estática de racionalidade – a verdade de que só o desejo cria valores. E assim os valores da Civilização estão baseados na negação do desejo.

O capitalismo, que afirma produzir a Ordem mediante a reprodução do desejo, de fato se origina na produção da escassez, e só pode reproduzir-se na insatisfação, na negação e na alienação. Enquanto o Espetáculo se desintegra (como um programa de Realidade Virtual que funciona mal) revela os ossos descarnados da Mercadoria. Como esses viajantes em transe dos contos da fada Irlandeses que visitam o Outro Mundo e parecem comer delícias sobrenaturais, nos despertamos em um remelento amanhecer com cinzas em nossas bocas.

O Indivíduo versus o Grupo – o Eu versus o outro – uma dicotomia falsa propagada através dos Meios de Controle, e por cima de todo meio de linguagem. Hemes – e Angel – o meio é o Mensageiros. Todas as formas de comunicação deveriam ser angélicas – a própria linguagem deveria ser angélica – uma espécie de caos divino. Mas ao contrário, está infectada com um vírus auto-replicante, um cristal infinito de separação, a gramática que nos impede de matar a alguém de uma vez por todas.

O Eu e o Outro se complementam e completam mutuamente. Não há Categoria Absoluta, nem Ego, nem Sociedade – e sim só uma trama caoticamente completa da relação – e o “Atrator Estranho”, a própria atração, que evoca ressonâncias e modelos no fluxo do converter-se.

Desta turbulência surgem valores, valores que estão baseados na abundância em vez da escassez, no deleite mais do que na mercadoria, e na melhora sinérgica e mútua melhora do individuo e do grupo; – valores que em todos os aspectos são os opostos da moralidade e da ética da Civilização, porque tem a ver com a vida em vez da morte.

“A Liberdade é uma habilidade é uma habilidade psicocinética” – não um nome abstrato. Um processo, não um “estado” – um movimento, não uma forma de governo. A Terra dos Mortos conhece essa Ordem perfeita ante o que o orgânico e o animato retrocedem horrorizados – o que explica porque a Civilização do Equivocar-se esta mais que meio enamorada da morte cômoda. De Babilônia e Egito ao Século XX, a arquitetura do Poder nunca pode ser realmente distinguida dos túmulos das necrópoles.

O Nomadismo e o Levante, nos proporcionam possíveis modelos para uma “vida cotidiana” de Anarquia Ontológica. Os aperfeiçoamentos cristalinos da Civilização e da Revolução deixam de interessar-nos quando experimentamos ambas como forma de Guerra, variações sobre esse velho e cantado Timo Babilônico, o mito da Escassez. Como o beduíno, escolhemos uma arquitetura de peles – e uma terra cheia de lugares de desaparição. Como a Comuna, escolhemos um espaço líquido de celebração e risco em lugar do ermo velado do Primas (ou Prisão) do Trabalho, da economia do Tempo Perdido, do rito da nostalgia por um futuro sintético.

Uma poética utópica nos ajuda a conhecer nossos desejos. O espelho da Utopia nos proporciona uma espécie de teoria crítica que nenhuma mera política prática nem filosofia sistemática podem esperar desenvolver. Porém não temos tempo para uma teoria que meramente se limita à contemplação da utopia como “lugar-sem-lugar” enquanto lamenta a “impossibilidade do desejo”. A penetração da vida cotidiana pelo maravilhoso – a criação de “situações” – pertence ao “principio material corporal”, e a imaginação, e ao tecido vivente do presente.

O individuo que percebe este imediatismo pode ampliar o círculo do prazer até certo ponto simplesmente despertando-se da hipnose dos “Espectros” (como Stirner chamava a todas as abstrações); e mais ainda pode ser logrado pelo “crime”; e mais, todavia, pelo duplicamento do Eu na sexualidade. Da “União de Egoístas” de Stirner passamos ao círculo de “Espíritos Livres” de Nietzsche, e daí às “Séries Passionais” de Fourier, duplicando-nos e reduplicando-nos inclusive enquanto o Outro se multiplica no eros do grupo.

A atividade de um grupo assim chegará a substituir a Arte como nós, pobres diabos pós-modernos, a conhecemos. A criatividade gratuita, ou o “jogo”, e o intercambio de deleites, causaram a extinção da Arte como a reprodução de mercadorias. A “epistemologia dadá” borrará toda separação fundindo-as, e dará a luz de novo a um paleolitismo psíquico em que a vida e a beleza não podem ser distinguidas. A arte neste sentido sempre foi camuflada e reprimida ao longo de toda a Alta História, mas nunca se desvaneceu eternamente de nossas vidas. Um exemplo favorito: o encontro para fazer colchas
, um desenhar espontâneo levado a cabo por um coletivo criativo não hierárquico para produzir um objeto único, útil e belo, tipicamente como deleite para alguém conectado com o círculo.

A tarefa da organização imediatista pode ser resumida como o alargamento deste círculo. Quanto maior for a porção de minha vida que pode ser arrancada do ciclo Trabalha\Consume\Morre, e (de)volta à economia do “encontro”, maiores serão minhas oportunidades de prazer. Mas o próprio risco faz parte da experiência direta do prazer, um fato conhecido em todos os momentos insurrecionais – todos os momentos de despertar – de intensos desfrutes arriscados: o aspecto festivo do Levante, a natureza insurrecional do Festival.

Mas entre o solitário despertar do indivíduo, e a anamnésia sinérgica da coletividade insurrecional, se estende todo um espectro casual entre dois espíritos afins que podem engrandecer-se mutuamente por seu breve e misterioso encontro; outros são como festividades/ ainda outros como utopias piratas. Nenhum parece durar muito tempo - mas pra que? As religiões e os Estados se gabam de sua supremacia – que, como sabemos, é só uma besteira...; o que significam é morte.

Não necessitamos de instituições “Revolucionárias”. “Depois da Revolução” ainda continuaríamos derivando, evadindo-nos da instantânea esclerose de uma política de vingança, e em troca buscaríamos o excessivo, o estranho – que para nós se converteu na única norma possível. Se agora nos somamos ou apoiamos a certos movimentos “revolucionários”, seriamos certamente os primeiros “traídos” se “chegassem ao poder”. O poder, depois de tudo, é para nós – não para algum fodido partido de vanguarda.

Em Zona Autônoma Temporária havia uma discussão sobre “a vontade do poder como desaparição”, enfatizando a natureza evasiva e a ambiguidade do momento de “liberdade”. Na presente série de textos (apresentados originalmente como Rádio Sermonettes – Sermõezinhos Radiofônicos – em uma emissora FM de Nova York e publicados com esse título pelos anarquistas do Libertarian Book Club) o foco se volta à ideia de uma práxis de reaparição e, portanto, ao problema da organização. A pretensão de uma teoria da estética do grupo – mais que uma sociologia ou política – foi expresso aqui como um jogo para espíritos livres, mais do que como molde para uma instituição. O grupo como meio ou como mecanismo de alienação, foi substituído aqui pelo grupo Imediatista, dedicado a superação da separação. Este livro poderia ser classificado como um experimento-de-pensamento sobre irmandade festiva – não tem maiores ambições. Sobretudo, não pretende fazer saber “o que deve fazer-se” – o engano dos aspirantes à comissários e gurus. Não quer discípulos – preferiria ser queimado: imolação, não emolação! De fato praticamente não tem interesse no diálogo, e prefere atrair co-conspiradores do que leitores. Encanta-lhe falar, mas só porque falar é uma forma de celebração mais do que uma forma de trabalho. E somente a intoxicação está entre este livro e o silêncio.

Hakim Bey (Equinócio de Inverno de 1993)

Tradução: Danilo (nilo_ornelas@yahoo.com.br) e Erahsto (erahsto@yahoo.com.br)