13 de fev. de 2012

Cibernéticos e Enteogênicos: do ciberespaço para o neuroespaço

Cibernéticos e Enteogênicos: do ciberespaço para o neuroespaço

Palestra de Peter Lamborn Wilson

Realizada durante o Festival "Next Five Minutes" – Mídia Tática – Amsterdam, em 19 de janeiro de 1996.

Aprendi o termo “Neuroespaço” com o artista Vladimir Muzehesky, de Kiev, por meio de Geert Lovink. O que imediatamente pensei que ele queria dizer com isso era uma comparação entre o espaço que é posto como pertencente ao computador, com o espaço neural ou a experiência interior, que vem, para a maioria de nós, principalmente através de drogas psicodélicas – neuroespaço como o espaço de alucinações, por exemplo. Gostaria de comparar e contrastar, como se costumava dizer na escola, o ciberespaço e o neuroespaço. Existem semelhanças e diferenças.
Lembro-me de alguns anos atrás, quando a realidade virtual de repente apareceu em cena com grande estandarlhaço, seguindo para uma conferência em Nova York onde Timothy Leary, que Deus o abençoe, apareceu com Jaron Lanier e mais outros cibernautas. Tim estava pondo as luvas, estava no palco e disse: “Oooh, eu estive aqui antes”. Assim, desde o início houve essa conexão criada entre a realidade virtual e a experiência de LSD – ou, como alguns de nós preferimos chamar, “experiência enteógena”, que é apenas uma maneira elegante de não usar a palavra psicodélico porque alerta a polícia. Na verdade, “enteógeno” significa o nascimento do “Divino Interior”. Sou capaz de usar esse termo, que é significativo para mim, mesmo não sendo um teísta no sentido estrito da palavra. Não penso que você tem que acreditar em Deus para compreender que pode haver uma manifestação do Divino Tornando-se Interior.
Na verdade, historicamente – e, pelo menos pra mim, experimentalmente e existencialmente – tem sido o aspecto mais importante do reaparecimento de drogas psicodélicas em minha vida. Sou quase um contemporâneo exato do LSD: nasci em 1945, e Albert Hofmann já cozinhava várias versões preliminares. Conheci Hofmann no verão passado e ele é uma propaganda maravilhosa para a experiência psicodélica. Já tem bem mais de 80 e está forte e saudável – tem todas as suas células cerebrais e permanece trabalhando, come como um cavalo e bebe como um peixe! É do curso de minha vida que estamos falando.
Há uma questão histórica, na própria história das religiões em si, que é: De onde vêm os psicodélicos?

Terence Mckenna acredita que a própria consciência humana é uma função da experiência psicodélica, especificamente do cogumelo de psilocibina. Ele acredita que um dia um macaco tomou um cogumelo e tornou-se humano, porque a cognição apareceu. Terence diz que o que nos torna humanos é a experiência psicodélica. Não sei se acredito literalmente nisso; em todo caso, não acredito em qualquer origem única para a consciência humana. Mas é esclarecedor para pensar sobre a possibilidade de que podemos dever nossa diferença dos outros membros do clã dos símios à nossa habilidade de experimentar psicodélicos, de certa forma. Se for o caso, seria verdade que toda nossa experiência de cognição – que historicamente pertence à categoria do que é conhecido como “religião” – teria começado com psicodélicos. Toda a experiência psicodélica teria coexistido no período do surgimento humano. Uma hipótese interessante que podemos adicionar a todas as teorias das origens humanas.
Gosto de pensar em palimpsestos. Na Idade Média não tinham muito papel, portanto, escreviam de uma forma no papel e depois reescreveriam de outra forma no mesmo papel. Às vezes, chegavam a escrever de uma terceira forma. Eles foram usados para serem lidos assim. Minha abordagem para a teoria é um palimpsesto: Gosto de acumular teorias, uma sobre a outra, e segurar toda a pilha contra a luz para ver ainda assim alguma luz está ultrapassando. Pense nisso como acetatos de animação, mas com a escrita em uma pilha. Adicione todas essas teorias, umas sobre as outras.
A forma positiva de olhar para a consciência é que somos “nós”. O aspecto ruim disso é que a própria consciência parece ser um processo de separação. Georges Bataille falou sobre isso de uma maneira interessante: ele especula que toda a religião diz respeito a um traço de memória de um tempo em que o ser humano foi separado da natureza – do animal, vamos dizer. E se você acredita na evolução, esta é apenas literalmente verdadeira. Houve um tempo em que éramos macacos de algum tipo. É no momento da consciência que essa separação ocorre. De repente não é mais uma questão de experiência animal e sim o que Bataille chama de “intimidade original”. Agora estamos nos desligando da matriz e nos plugando na cognição. Religião, nesta visão, começa imediatamente após esse momento, porque “religio” significa religar, ligar novamente. O que estamos tentando fazer com todas estas formas religiosas e filosóficas é tentar nos ligar com a intimidade original, que perdemos quando iniciamos a experiência de cognição.
Se Terence está certo de que a cognição começa com drogas, então o próximo passo seria tomar mais drogas, para tentar recuperar o que se havia perdido. Assim, nessa leitura, a consciência e religião humanas, que são tão intimamente vinculadas, teriam sempre se envolvido com plantas psicodélicas. Aqui deparamo-nos diante de um problema na antropologia, que apenas recentemente se tornou conhecido. Como os antropólogos estudam a maioria das sociedades “primitivas” que podemos encontrar – isto é, as sociedades de caçadores e coletores tribais – esses grupos não parecem ter muito a ver com drogas psicodélicas. De acordo com os antropólogos, plantas psicodélicas aparecem na história da humanidade junto com a agricultura – assim, no máximo, há 12 mil anos atrás.
Agricultura, o período que ainda estamos, representa no máximo 1% de toda a história humana. Mas se você for à América do Sul e comparar as tribos de caça e os agricultores primitivos, que cultivam um pouco de vegetais de subsistência e fazem alguma caça e pesca – sem uma liderança forte, muito igualitárias – são nesses grupos que começamos a ver plantas psicodélicas emergindo como um fenômeno cultural. Imediatamente me ocorreu que há algo errado aqui. Por que os agricultores sabem mais sobre plantas selvagens que os caçadores e coletores, que, na verdade, dependem das plantas selvagens? Eles dependem de, pelo menos, 70% na coleta e apenas 30% na caça. A coleta, que normalmente é feita por mulheres, é muito mais importante economicamente do que a caça, que normalmente é feita por homens. Os homens acreditam que a caça é muito mais prestigiosa, mas é economicamente menos importante. Os caçadores, é claro, sabem sobre todas as plantas, mas ainda não necessariamente as ritualizaram: eles não criaram um culto da planta psicodélica.
A agricultura é a única tecnologia nova e radical que apareceu no mundo; o que equivale a um corte na terra. Se você ler qualquer antropologia sobre nativos americanos, vai descobrir que quando os europeus brancos chegaram e tentaram forçar as tribos para a agricultura, os povos tribais sempre dizem a mesma coisa: “O quê, você quer que estupremos nossa Mãe, a Terra? Isso é perverso. Como você exigiria que seres humanos fizessem isso?”. Agricultura aparece imediatamente como um mau negócio para essas tribos. Não há dúvidas de que esta tecnologia leva inevitavelmente, e com bastante rapidez, às hierarquias sociais, divisão, estrutura de classes, propriedade e religião como a entendemos – uma classe sacerdotal que diz a todo mundo o que fazer e como pensar. Ela leva, em outras palavras, ao autoritarismo e, em última instância, ao próprio Estado.
Economia, dinheiro, toda a miséria da civilização, nós devemos à agricultura. Antes disso você tem dois milhões de anos de caça e coleta, a bela arte das cavernas, um mundo que se mostra suspeitamente utópico, uma era dourada em comparação com muitos dos problemas que a agricultura traz. Em certo sentido, a agricultura é uma diminuição do encanto. Não quero ser um reacionário, um ludita - estou simplesmente apontando algo que é muito verdadeiro e óbvio, mas demorou muito tempo para os seres humanos civilizados perceberem isso. Na década de 1960, o antropólogo Marshal Sahlins descobriu que as sociedades caçadoras e coletoras que existem hoje só trabalham uma média de quatro horas por dia para obter seu alimento, enquanto as sociedades agrícolas trabalham em média dezesseis horas por dia. Caçadores e coletores têm mais de 200 tipos de alimentos em sua despensa ao longo de um ano, enquanto que os agricultores primitivos só comem uma média de vinte.
Desse ponto de vista, Sahlins apontou, é absolutamente incompreensível que ninguém jamais desistiria da caça para a agricultura. Desde que li aquele livro “Stone Age Economy”, fui descobrir o porquê – por que entregamos este amável Jardim do Éden para essa condição? É claro que o caçador conhece a fome, mas o caçador não conhece a escassez; que só vem a aparecer com a economia. A vida do caçador pode ser miserável – pode ser também muito fria, muito quente, muito nua, ele pode ser eliminado por um urso polar, o que quer que seja – mas a única coisa que o caçador nunca terá são as misérias da civilização.
Se vamos falar sobre os aspectos positivos da civilização, vamos lembrar que eles só são aproveitáveis para 10% de qualquer população, em outras palavras, a propriedade é possuída pela elite. Para todos os outros, a civilização é um negócio horrível. Ser transformado em um servo ou um escravo, para o sacrifício humano. Sabemos que o canibalismo diz respeito à agricultura, não às tribos de caça. Gosto de pão – não estou disposto a renunciar ao pão. O que estou tentando apontar para você com esse ataque exagerado na agricultura, é que a agricultura é uma ruptura tecnológica muito grave. É como se você desenhasse uma linha: de um lado há uma floresta selvagem e do outro há humanidade, cultura e, finalmente, a civilização. No lado claro nós aramos a terra, traçamos linhas retas e conhecemos a tecnologia das sementes. O calendário é a primeira tecnologia, no sentido de falsa consciência, porque só os agricultores podiam inventá-lo. Indústria é um epifenômeno menor da agricultura, a partir desse ponto de vista. A agricultura é a única tecnologia importante que já foi inventada e solicita uma completa reavaliação da relação humana versus o mundo natural, o mundo das plantas e animais.
Como resultado dessa relação inteiramente nova, dessa inovação, haverá uma interpretação completamente nova da planta psicodélica. A planta mágica, enteogênica, vai agora emergir em um contexto religioso – que antes poderia ter sido apenas uma questão de conhecimento individual de um único coletor. Agora, de repente, tem que existir um culto da planta enteógena. Porque a agricultura é tão traumática com a sociedade humana, ela necessita ter uma vida, xamanismo e relações mágicas com plantas. Antes as plantas eram como outros seres, agora são espíritos estranhos que crescem na floresta. Na verdade, um antropólogo escreveu um livro fascinante sobre o tabaco como uma planta psicodélica na América do Sul: primeiro a agricultura teria sido desenvolvida para o cultivo de plantas psicoativas, e é por isso que os seres humanos podem mesmo ter se tornado agricultores para garantir um bom suprimento de tabaco, cogumelos ou o que quer que seja.  Um amigo disse uma vez: “Sim, tudo é psicotrópico”. Qual substância que você ingerir pode vir a fazer uma transformação em seu corpo. Não importa que seja água, comida, ar – tudo será transformado através da matéria.
Não é verdade que a agricultura descobriu os psicodélicos. E posso provar, com base na mitologia, que as sociedades de caça sabiam disso muito bem. Todos os mitos sobre plantas psicodélicas sempre dizem que aprendemos sobre as plantas com o povo selvagem da floresta. Um exemplo: o culto Buiti do noroeste da África, que se baseia na ibogaína. Eles clamam que pegaram ela dos pigmeus. De repente parece que estamos vendo pela primeira vez o surgimento da planta psicotrópica, ao passo que até então ela era meramente uma dentre diversos psicoativos em um mundo que foi totalmente psicoativo, agora é uma substância especial que nos permitirá recuperar a intimidade original. Ela nos fará mais conscientes, nos fornecerá algo além da mera consciência, o que, de certa forma, será um retorno a essa intimidade original da natureza.
É bastante claro que todas as grandes sociedades neolíticas tinham algum tipo de culto de soma – a palavra sânscrita para a experiência psicoativa. O Rig-Veda, um dos mais antigos livros da humanidade, é todo sobre a experiência psicodélica. Se ao menos Tim Leary tivesse usado o Rig-Veda em vez do Livro Tibetano dos Mortos para introduzir o LSD, os anos sessenta teriam sido uma década diferente. O Livro Tibetano é sobre a morte, depressivo, enquanto o Rig-Veda é muito mais sobre a vida, a alegria e o poder. De qualquer forma, todas as sociedades neolíticas e clássicas tinham alguma variedade disto. Devemos estas descobertas ao grande Gordon Wasson, que foi o primeiro a discutir se a soma do Rig-Veda era de fato um cogumelo mágico. Ele também chegou à conclusão de que os mistérios de Elêusis, um dos principais ritos religiosos dos antigos gregos, eram também estimulados por uma planta psicoativa. Os antigos persas tinham algo chamado “helma”, que poderia ter sido uma planta que contém armolina. Reivindico ter descoberto que os irlandeses antigos tinham um culto semelhante... e, obviamente, sabemos sobre os astecas e os maias: eles ainda tinham um ativo culto psicodélico quando os conquistadores chegaram. Em algumas das antigas crônicas espanholas pode-se realmente ler sobre cogumelos mágicos. Mas de alguma forma esses textos foram perdidos, ou ninguém os leu, ou, se os leu, não acreditavam neles ou ficaram horrorizados por eles.
É a propagação do cristianismo que parece sinalizar o fim do mundo clássico psicodélico. John Allegro, um dos estudiosos originais dos manuscritos do Mar Morto – ele ficou louco, de acordo com a maior parte das pessoas – escreveu um livro chamado “Mushroom and the Cross”, no qual afirma que Jesus Cristo era um cogumelo. Sempre senti que Jesus Cristo pode ser qualquer coisa que você queira que ele seja, então, por que não? Historicamente, talvez essa propriedade anti-psicodélica tenha algo a ver com o vinho, o sacramento do cristianismo. Vinho em si, embora seja psicoativo, não é tão psicodélico quanto os cogumelos mágicos. E álcool tem seus problemas. Terence McKenna tomou uma posição muito puritana: antiálcool, café, açúcar, chá, qualquer um desses psicotrópicos modernos.
O Ocidente provavelmente perdeu o conhecimento da maior parte das substâncias de alteração mental em um processo gradual paralelo à difusão do cristianismo. O vinho é sacramentado, e seu potencial dionisíaco permanece, como mágica – por exemplo, na missa católica, uma performance mágica em que o pão e o vinho são transformados em uma festa canibal, e  na “função soma”, o que significa que tudo são psicotrópicos. Como um dos poetas sufi disse: “Um bêbado nunca se tornará sábio, mesmo depois de cem garrafas de vinho, mas o homem sábio ficará intoxicado com um copo de água”.
Pensem sobre Rabelais, por exemplo. Ele dedicou o último capítulo de seu livro ao que chamou de “Erva Pantagruelion”, e é óbvio para qualquer leitor moderno que ele está se referindo aqui sobre a maconha. Assim, o conhecimento psicodélico não foi nem mesmo perdido, nem mesmo na época de Rabelais. Ele foi transmitido de uma forma não alfabetizada – por mulheres sábias, médicos rurais, curandeiros e mães camponesas que conheciam sobre as plantas. O conhecimento se tornou oculto, um segredo. Rabelais está brincando com o fato que está ciente de algo que você não conhece. O conhecimento nunca foi perdido porque nenhuma cultura pode se manter sem alguma abertura para a consciência não ordinária. Você tem que ter alguma válvula de escape para uma civilização, mesmo que seja psicose em massa. Tem que haver uma escapatória.
A ideia de transformação através da ingestão de enteógenos ou plantas psicodélicas, entretanto, não foi inteiramente erradicada até mesmo na Alta Idade Média. O conhecimento foi condenado ao inferno. O cogumelo psilocibina sempre esteve aqui, nunca sumiu, mas estava escondido – eu estou falando como Terence agora, apenas tomemos isso como uma metáfora – estava escondido porque ninguém o reverenciava, ninguém necessitava dele. Não foi porque Wasson tirou os esporos de suas botas em 1956 que, de repente, cogumelos mágicos estavam por todo mundo de novo, foi porque algumas mudanças de paradigma ocorreram ao mesmo tempo. Se Wasson não tivesse feito isso, outra pessoa teria feito a descoberta. Como Robert Anton Wilson diz: “Quando é tempo de motor a vapor, são motores a vapor”.
A redescoberta já vem acontecendo desde o século dezenove, quando gente como Baudelaire, Rimbaud e DeQuincy, ou os românticos, entraram no haxixe e no ópio. Eles aprenderam sobre o assunto a partir do mundo islâmico. Mais uma vez, de uma maneira oculta e velada, estes foram os “poetes maudites” – conhecimento maldito, conhecido por pessoas malditas. Depois há Antonin Artaud, que foi para o México e tomou peiote ou Ernst Juenger, Mircea Eliade, C.G. Jung, Walter Benjamim, Ernst Bloch – todos eles fizeram experiências com drogas. Sabemos sobre Aldous Huxley porque ele escreveu o primeiro livro sobre isso em inglês. Então, quando a revolução psicodélica acontece, já é uma velha história.
A invenção do LSD, por volta de 1945-1947, é, de alguma forma, emblemática para mim. É, de fato, a primeira droga psicodélica sintética e a coisa notável é que você precisa de 200mg ou até menos. Isso não é nada. Ela leva toda a história da experiência psicodélica para um novo, e muito mais técnico, mundo da ciência moderna. Antes era o mundo primitivo das plantas. Há uma razão para isto. No começo, formulei a hipótese de que as drogas primeiro aparecem na história humana porque são usadas de forma religiosa em sociedades agrícolas e o uso e descoberta de psicodélicos é, de alguma forma, uma resposta ao desenvolvimento tecnológico. Este avanço tecnológico torna mais pungente, mais violenta, nossa separação daquela intimidade original, daquela experiência da pura consciência animal. Assim sendo, é a tecnologia que provoca o reconhecimento, por parte das primeiras sociedades agrícolas, do aspecto cultural e religioso destas plantas. Agora estamos aqui, um bom tempo depois na história humana – e ocorre o primeiro desenvolvimento interessante da tecnologia desde a agricultura.
Podia ser que, por volta de 1945, víssemos as coisas...em vez de se tornarem mais e mais massivas – de repente, se tornaram mais desmaterializadas (a bomba atômica desmaterializa a matéria de uma forma muito radical). Uma experiência muito espiritual, por um lado, e o computador, por outro lado – o que, como sabemos agora, estava destinado a trazer a “economia da informação”. Você não pode comer informação, logo ela não é realmente uma economia, e nunca será – mas, apesar disso, há algo nessa expressão. Há uma verdade por trás da merda, há esta desmaterialização, uma repulsa contra o peso do corpo, uma desincorporação da produção. Sabemos que os computadores são supostamente um grande evento espiritual, embora ainda seja uma máquina, não é uma máquina pesada, é uma máquina simples, com um botão de liga/desliga.
É claro que não superaremos a economia de produção através disto. Alguém ainda tem que fazer sapatos, cultivar alimentos – e não seremos nós! “Nós” não vamos sujar mais nossas mãos com isso. Deixe que os mexicanos o façam, enquanto nós habitaremos este maravilhoso espaço gnóstico de pura informação. Enviamos nossas fábricas imundas e poluentes para a Índia, Bofal, para Chernobyl, para que possamos ficar limpos, para que possamos ser a “ciberclasse”. Não importa o que você pensa sobre o potencial libertador do computador, também devemos enfrentar o fato de que há uma desincorporação acontecendo. Subitamente você não tem mais nenhum corpo – é análogo à desincorporação que a bomba atômica provoca quando o atinge. Portanto, é uma coincidência que nestes mesmos dois anos o LSD é sintetizado, a mescalina, o MDMA, mais a redescoberta do cogumelo...
Há uma ligação muito interessante entre a tecnologia e a experiência psicodélica.
Provavelmente a ocultação dos psicodélicos tem seu clímax com a industrialização e com a substituição furtiva do espaço orgânico para o espaço maquínico como um princípio de ordenação psíquica. Mesmo a consciência agrícola ainda é uma consciência orgânica: ela tem a ver com a terra, com plantas e animais. É uma consciência muito gradeada, ordenada, mas ainda é orgânica. Mas à medida que nos encaminhamos para os “moinhos satânicos” (Blake) e a inglesa classe trabalhadora de Engels, o espaço maquínico se tornou o princípio ordenador. Não é mais o arado que cria o espaço, é a linha de produção que cria espaço psíquico. Então o puritanismo vitoriano e o imperialismo devem representar a repressão pública do inconsciente por uma sobriedade rígida baseada num modelo mente/máquina que é o cogito isolado e mandatório. Se você quiser descobrir um período da história humana em que realmente houve uma amnésia completa sobre a experiência psicodélica, este deveria ser o século dezenove, por volta de 1830-1880, quando nós, pessoas civilizadas, não só nos esquecemos de que houve algo como a experiência psicodélica como a negamos.
Como uma cultura, nós gostamos de rir de tribos primitivas – por exemplo, aqueles aos quais são mostradas fotografias de si mesmo e não conseguem se reconhecer nelas. Mas em 1876 um cientista francês caiu por acidente em uma das cavernas paleolíticas. Mais tarde, ele escreveu em seu diário que pareciam haver alguns rabiscos nas paredes. Ele não podia ver que aquilo era arte, ele era tão cego quanto o pigmeu que é cego para a fotografia. De repente, alguns anos mais tarde, as pessoas podiam ver aquilo como arte. O que permitiu que T.S. Eliot dissesse mais tarde que, desde Lascaux, a arte ocidental “tombou da escadaria”. O que permitiu Picasso ver de repente as máscaras africanas, os impressionistas franceses verem a arte japonesa e os hippies dos anos sessenta ouvirem música indiana? Para os britânicos colonialistas que visitassem a Índia, a música para eles era como “choradeira de mosquitos – como eles podem suportar isto?”. Os ingleses não podiam ouvir isso como música. A geração de meus pais nunca poderia estudar música indiana como música: “O que é esse zumbido barulhento? Garotos, vocês estão chapados de novo?”. Isso é o que chamo de uma mudança de paradigma da cognição.
No exato instante em que a enteogênese – isto é, o nascimento do Divino Interior – reaparece no Ocidente com os românticos tardios como uma subcultura, uma “história oculta”, as condições estavam sendo criadas para essa mudança de paradigma. Ainda estamos basicamente submetidos a ela. A única coisa que poderia mesmo fingir essa mudança de consciência, seria a Lei, como a Guerra às Drogas. Mas a nossa lei é uma lei máquina, uma lei gradeada, mecânica, e é obviamente incapaz de conter a fluidez do orgânico. É por isso que a Guerra às Drogas nunca vai funcionar. Assim como você poderia declarar guerra às plantas. Logo, o discurso público está próximo do esgotamento sobre à questão da consciência. A Guerra às Drogas é um combate à própria cognição, sobre o próprio pensamento como condição humana. É o pensamento esta dualista razão cartesiana? Ou é a cognição esta coisa misteriosa, complexa, orgânica, mágica, como pequenos elfos do cogumelo dançando em torno. Qual há de ser?
A Guerra às Drogas e uma batalha de paradigma. Cada refinamento na consciência maquínica vai evocar uma resposta dialética do reino orgânico. É como se os elfos do cogumelo estivessem ali, é como se houvesse consciência da planta que responde à consciência maquínica. É uma metáfora tão bonita – você não tem que acreditar em elfos, tudo é a consciência humana, em última instância. Você não tem que acreditar em algo sobrenatural para explicar isso. Então, em torno de meados do século vinte, a tecnologia começa a se afastar de uma perspectiva imperial gigantesca para uma dimensão mais “intimista”, com a quebra do átomo, o espaço virtual de comunicação e do computador. E foi por volta dessa mesma época que os psicodélicos sérios realmente começam a reaparecer – a mescalina, psicocibina, LSD,DMT, ketamina, ecstasy, etc etc.
A guerra de paradigma que está arrebentando agora é uma medida do antagonismo entre o ciberespaço e o neuroespaço, mas a relação não pode ser simplesmente vulgarizada como uma dicotomia. Isso nos leva à chamada “segunda revolução psicodélica” – só uma outra batalha no mesmo combate. Sob um ponto de vista, nós perdemos a Guerra às Drogas nos anos sessenta, ela foi esmagada e levada para o subterrâneo de novo. O que Leary e Huxley sonharam, uma transformação da sociedade através desta experiência, não aconteceu. Ou aconteceu? Agora sabemos que a CIA estava profundamente envolvida na difusão do LSD em todo o mundo. Na segunda viagem de Wasson ao México, havia um agente da CIA no grupo. Todos tiveram um momento maravilhoso, exceto uma pessoa – adivinhem quem... Eles estavam interessados no aspecto bad-trip da coisa – certamente também uma experiência psicodélica. A CIA tentou monopolizar o LSD, controlar sua distribuição, no qual virtualmente financiaram todos os projetos de pesquisa. Eles estavam interessados em lavagem cerebral. Os anos sessenta devem tanto à CIA quanto aos Learies e aos hippies. Havia essa complexa rede do bem e do mal, inteligente e estúpido, tudo numa mistura de fumaça – padrões fractais influenciando uns aos outros, em que cada joia reflete todas as outras joias. Essa é a história secreta dos anos sessenta.
Durante os anos setenta e oitenta, as coisas pareciam bastante sombrias. A “segunda revolução psicodélica” que temos agora envolve algumas drogas novas, como a ibogaína, e uma nova e mais cuidadosa abordagem científica. Nós aprendemos a ser cuidadosos com os financiamentos e protocolos. E há uma nova geração: não se preocupe, os garotos então certos. LSD é uma droga perigosa, destrói algumas pessoas, mas a vida é um negócio arriscado. Se há uma coisa que odeio é a palavra “segurança”. Vivemos em uma civilização de segurança, em que estamos encasulados de todo perigo, quero dizer, de toda a experiência. O que nos resta é um vegetal plugado a um computador, que nunca sai do quarto, como uma visão hedionda de um romance de William Gibson. Redescobrir o risco seria um bom conselho para nós.
Uma nova guinada no trabalho psicodélico pode ser encontrada no trabalho da Fundação Albert Hofmann e na difusão do ácido no Leste Europeu – tudo parte dessa “segunda revolução psicodélica”, no qual ligo muitíssimo a Internet, esta reação dialética entre o mundo da planta e o mundo da máquina. O antagonismo entre ciberespaço e neuroespaço é uma coisa – mas há também uma analogia. De alguma forma o ciberespaço é alucinógeno, ou foi pensado para ser. Ambos envolvem um espaço interior visionário. É como dizer que o LSD é como uma bomba atômica, “ele explodiu sua mente”. Ele tem esse lado negativo também.
Sejamos claros: o ciberespaço está acontecendo fora de seu corpo, você pode mover seu corpo vendo essas animações ruins se movendo ao seu redor. A realidade virtual já fracassou?
Alguém disse hoje que a realidade virtual fracassou porque ela já foi virtualmente experimentada através da mídia. Poupe seu dinheiro e escute sobre isso na televisão – isso é o bastante. É muito conceitual, um desses futuros que nunca aconteceu e nunca acontecerá. E não se esqueça que o ciberespaço é muito mais do que apenas RV (realidade virtual). A Rede realmente importante não é a internet, mas a rede bancária internacional. Lá, um trilhão de dólares está sendo movimentada todos os dias. “O dinheiro foi para o paraíso”, como meu amigo Gordon costuma dizer. Dinheiro que se refere a dinheiro, que se refere a dinheiro, etc – o conceito mais abstrato que a humanidade já desenvolveu. Comparado a isso, a internet não é nada, é um minúsculo recanto das telecomunicações.
Contudo, a Internet é interessante para mim porque ela parece ter um potencial libertador – queremos descobrir seu aspecto psicodélico. Pessoalmente, tenho ficado mais e mais pessimista, todos os caminhos parecem terminar em uma redução de nossa autonomia. A Internet é outro dispositivo de resolução para a crise do capitalismo global ou vai desaparecer ou ser relegada a um meio de comunicação menor, bem menos importante que os correios. Existem pouquíssimos espaços deixados para uma bela agitação. Não podemos mais esperar para vencer essa batalha particular da guerra de paradigmas. Não creio que essa tecnologia, mais do que qualquer outra tecnologia, vá ser o instrumento correto que nos trará liberdade e glória. Ela não é a solução; não é nem mesmo a pergunta e, muito menos, a resposta. Preferiria ver a questão ampliada para incluir o neuroespaço – porque o ciberespaço, conceitualmente, é uma forma de desincorporação.
Como um historiador das religiões, vejo que a tragédia da história humana é a separação da mente e do corpo. Desde os tempos da Mesopotâmia, a religião sempre foi uma tentativa de escapar do corpo: ela se torna mais e mais gnóstica, no sentido da aversão ao corpo. Se você quiser ouvir alguma maravilha gnóstica, tudo o que tem que fazer é ouvir alguns dos entusiastas defensores da Internet. As pessoas que realmente acreditam estar caminhando para a transcendência da consciência corporal, fazendo download da consciência, escapando do cadáver. Isso é a imortalidade através da tecnologia, a transcendência através da consciência maquínica. É o mesmo que o “vire pastel quando bater as botas” (pie in the sky when you die), que antigos anarquistas usavam para criticar a religião. A Internet, nesse aspecto, é simplesmente uma versão moderna da religião. O ciberespaço é a nossa versão do paraíso.
Esses mitos não vão embora. Este racionalismo acaba por ser outro culto irracional, apenas outra ideologia, outra forma para a consciência de classe. O problema da reincorporação, portanto, é a única questão religiosa, intelectual e técnica, que precisamos nos fazer. O corpo é, ao mesmo tempo, o mistério e a chave para esse mistério. O ciberespaço não acontece no corpo. “Corpo sem Órgãos” é uma expressão de Deleuze e Guattari – e eles são estranhamente ambivalentes sobre o aspecto moral deste corpo. Entendo que sua “consciência maquínica” não seja necessariamente maligna. Poderia referir à experiência psicodélica como uma máquina marginal. Minha birra com a consciência maquínica surge quando se postula que o corpo é mau e que a mente é boa. E não se esqueça que a Igreja Católica amava Descartes. Essa consciência cartesiana que agora pensamos como maquínica, moderna e científica, ao mesmo tempo foi aclamada pela Igreja Católica como uma verdadeira filosofia religiosa.
O neuroespaço também envolve alucinações. Você pensa que está no Palácio da Memória, mas você não está. Você está sentado em seu quarto viajando em ácido: você está em um espaço imaginário, da mesma forma que no ciberespaço. E contudo, onde mais esse cativante evento poderia estar ocorrendo – senão no corpo? O neuroespaço é um espaço de incorporação. O ciberespaço é um espaço de desincorporação. Não quero soar como um moralista... Podemos acrescentar termos como “complexidade”, “caos” ou “a cármica teia de joias”.
Os últimos desenvolvimentos na consciência maquínica tem um aspecto “Deleuze-Guattari” de subversão, tal qual o ativismo via Internet – com um certo sabor psicodélico. Enquanto “drogas” são produzidas a partir de uma “segunda natureza”, que não é nada senão maquínica. Toda a “crise das drogas” é muito mais uma crise da consciência maquínica – e a heroína e a cocaína são, em boa parte, produtos maquínicos, assim como o LSD. No entanto, um aspecto opositor também aparece, uma “segunda revolução psicodélica”, uma dialética de reincorporação (“neuroespaço”) em oposição à falsa transcendência de desincorporação no “ciberespaço”.
Uma das grandes “redescobertas” desta nova enteogênese é a natureza dialética da ayahuasca, ou yage – isto é, que o DMT orgânico pode ser “realizado” em combinação com um inibidor MAO, como a harmina, e que fontes vegetais dessas duas substâncias estão globalmente difundidas, totalmente espalhadas ao ponto da ubiquidade, impossível de controlar e acessíveis. Preparações requerem apenas baixa tecnologia de cozinha. A neo-ayahuasca, ao contrário da tecnologia de computador, não é parte do capitalismo ou de qualquer outro sistema de controle ideológico.

É justo fazer essa comparação? Sim, na medida em que a enteogênese e a cibertecnologia estão ambas interessadas em informação e, consequentemente, em epistemologia. Na verdade poderíamos chamar ambos de “sistemas gnósticos” – ambos estão implicados no objetivo do conhecimento que emerge do abismo que parece separar a mente/alma/espírito do corpo. Assim, a versão enteogênica desse conhecimento, no entanto, implica em ampliar a definição do corpo para incluir o neuroespaço, enquanto que a versão cibernética implica no desaparecimento do corpo no meio da informação, o “download da consciência”. Ambos são possivelmente extremos absurdos, as imagens ao invés das situações políticas, pois também são potentes mitos, poderosas imagens.

Precisamos aqui de uma política – não uma ideologia, mas uma ativa cognização das situações realmente persistentes, tão claramente que poderemos captar em nossa modelada e chapada condição. Precisamos de um sentido estratégico de onde aplicar as cotoveladas de nossa arte material, os pequenos gestos marciais, Zen, onde mesmo uma pessoa fraca possa vencer uma batalha. Onde mesmo nós, desprezados marginais, poderíamos realmente possuir força própria e assim influenciar a história. Tudo isso leva a uma visão de autoimportância divertidamente apocalíptica e non sense, como “Neurohackers vs Nova Ordem Mundial”. Bem, é ao menos uma boa ideia para um romance de ficção científica.


(transcrito e editado por Geert Lovink e Byfield Ted)