3 de mai. de 2013

A esquerda? Não, obrigado! - John Zerzan



Ilustração de Bruno Pirata

Tradução: Rafael Barros


Não que não haja eventos acontecendo no mundo todo. Qualquer dia, em qualquer continente, vemos revoltas antigovernamentais; ações diretas pela libertação animal ou mesmo para proteger a Terra; esforços combinados em resistência à construção de barragens, autoestradas, instalações industriais; rebeliões em presídios; surtos espontâneos de vandalismo pelos que estão insatisfeitos e putos da vida; greves; e as atividades dos incontáveis infoshops, zines, acampamentos de habilidades primitivas, “oficinas” e encontros; grupos de leituras radicais, “Food Not Bombs”¹... A lista de atos de oposição e projetos alternativos é bem considerável.

A esquerda é que não está acontecendo. Historicamente, ela tem falhado monumentalmente. Qual guerra, depressão ou o ecocídio pôde prevenir? A esquerda existe agora, principalmente, como um veículo enfraquecedor de protesto nos, digamos, circos eleitorais.

A esquerda está no nosso caminho e precisamos seguir adiante.

O sumo hoje é a anarquia. Há uns dez anos, torna-se cada vez mais claro que as crianças com paixão e inteligência são anarquistas. Progressistas, socialistas e comunistas estão com cabelos brancos e não podem voltar no tempo. Alguns escritos recentes, de esquerdistas (por exemplo “Infinitely Demanding” de Simon Critchley) expressam a esperança de que a anarquia irá ressuscitar a esquerda, carente de reviver. Isto me parece improvável.

E o que é a anarquia hoje? Esta é a questão mais importante na minha opinião. Uma mudança fundamental está em andamento há um tempo, uma mudança que foi muito “sub-relatada” por razões muito óbvias.

O anarquismo tradicional, ou clássico, é tão fora de moda quanto o resto da esquerda. Ele não é, de forma alguma, responsável pelo surto de interesse em anarquia. Observe o uso aqui: não é o “anarquismo” que está avançando, mas a “anarquia”. Não uma ideologia eurocêntrica mas um diálogo aberto, um questionar e resistir sem barreiras.

A ordem dominante tem se mostrado incrivelmente flexível, capaz de cooptar ou recuperar incontáveis gestos radicais e abordagens alternativas. Por causa disto, coisas profundas são tratadas como coisas que não podem ser enquadradas nas condições do sistema vigente. Esta é a principal razão para o fracasso da esquerda: se os fundamentos não são desafiados num nível mais profundo, a cooptação é garantida. O anarquismo não saiu, até agora, da órbita do capital e da tecnologia. Ele aceitou instituições como a divisão do trabalho e a domesticação, principais motores da sociedade de massa – que também foi aceita por ele.

Começa uma nova perspectiva. O que, preeminentemente, vem surgindo sob diversas denominações: anarcoprimitivismo, neoprimitivismo, anarquia verde, crítica da civilização, entre outros. Para simplificar, vamos apenas dizer que somos primitivistas. Há mostras desta presença em muitos lugares; no Brasil, por exemplo, onde me juntei à centenas de pessoas, a maioria jovens, no Carnaval Revolução em fevereiro de 2008. Muitos me disseram que a orientação primitivista foi o tema do encontro e que o anarquismo clássico estava, notadamente, moribundo. Há uma rede de anti-civilização na Europa, além de laços informais e encontros bastante frequentes, da Suécia à Espanha e Turquia.

Lembro-me da minha excitação ao descobrir as ideias situacionistas: a ênfase na recreação e na compartilhação, prazeres terrenos, não o sacrifício, a abnegação. Minha frase favorita dessa corrente: “Under the pavement, the beach” (sob o pavimento, a praia). Mas a praia foi retida pela orientação dos conselhos de trabalhadores/ forma produtivista, que parecia em desacordo com a parte lúdica. Agora é hora de arruinar o plano deles, e realizar a outra parte, muito mais radical.

Uma jovem na Croácia, foi mais adiante, com sua conclusão de que o primitivismo é a base de uma movimento espiritual. A busca pela plenitude, o imediatismo, a reconexão com a Terra não é espiritual? Em novembro de 2008 eu estava na Índia (Delhi, Jaipur), e pude ver que a apresentação de uma abordagem anti-industrial ressoou entre pessoas de práticas espirituais distintas, incluindo as orientadas por Gandhi.

As vozes primitivistas dispersas e atividades já existem na Rússia, China, Filipinas e, sem dúvida, em outros lugares. Isto pode não constituir ainda um movimento que surge abaixo da superfície, mas, ao meu ver, caminha neste sentido. Não é apenas uma evolução lógica, mas um voltar para o coração da negação reinante, e demorará.

Este movimento primitivista que está nascendo deve surgir sem espanto, dado o escurecimento da crise que vemos, envolvendo todas as esferas da vida. Organizando contra o industrialismo e as promessas de alta tecnologia, que só agravaram a crise. Guerra contra o natural e uma tecnocultura cada vez mais árida, devastadora e sem sentido, são fatos gritantes. A marcha contínua da Máquina não é a resposta, mas o verdadeiro problema. O tradicional anarquismo de esquerda desejava que as máquinas fossem geridas pelos trabalhadores; mas nós queremos um mundo sem fábricas. Poderia ser mais claro, por exemplo, que o aquecimento global é uma consequência da industrialização? Ambos começara há 200 anos, e cada passo em direção a uma maior industrialização tem sido um passo em direção ao aquecimento.

A perspectiva primitivista baseia-se nos indígenas, na sabedoria pré domesticada, tenta aprender com os milhões de anos de existência humana antes da civilização, ou fora dela. A vida de coletor-caçador, levada antes do período neolítico, foi a anarquia original, e única: vivência de comunidade face-à-face, onde as pessoas não assumiam suas responsabilidades apenas para si, mas para o outro. Queremos alguma versão disto, levar uma vida radicalmente descentralizada. Não a sociedade de massa, que padroniza e globaliza a realidade, onde toda a maravilhosa tecnologia recai sobre a exploração de pessoas e a matança sistemática do planeta.

Há quem esteja incomodado com estes novos conceitos. Noam Chomsky, que consegue acreditar ainda nas mentiras do Progresso, nos chama de “genocidistas”. Como se a proliferação do moderno mundo tecnicista ainda não houvesse se mostrado genocida.

Percebo um interesse crescente em desafiar esta marcha da morte que vivemos. Afinal de contas, que bem o Iluminismo ou a Modernidade fizeram com seus reclames de aperfeiçoamento? A realidade é constantemente empobrecida, em todos os sentidos. Os massacres rotineiros em escolas, shoppings, nos trabalhos, falam tão alto quanto a catástrofe ecológica. A esquerda negou um aprofundamento, penoso e necessário, do discurso público, um questionar sério, sincero, sobre os acontecimentos que enfrentamos. Agora ela precisa ser suprimida de maneira radical, assim as visões inspiradoras podem surgir e serem compartilhadas.

Um mundo cada vez mais tecnificado, onde tudo é posto em risco, só é inevitável se continuarmos a aceitá-lo como está. A dinâmica disso tudo está em instituições primárias que precisam ser desafiadas. Estamos vendo o início deste desafio agora, superado as falsas alegações da tecnologia, do capital, e da cultura do cinismo pós moderno – E também o cadáver da esquerda, com seus horizontes extremamente limitados.


1. Grupo de coletivos independentes, que servem comida vegana e vegetariana grátis a outras pessoas (N.T. - fonte: wikipédia)

O artigo original pode ser encontrado neste link do site oficial de Zerzan. Caso encontre algum problema ou tenha alguma sugestão à tradução, comunique-nos.