14 de fev. de 2012

Asfalto Molhado



     Os pingos tocavam o chão depois de dois meses de estiagem. Era quase dez horas de uma manhã de janeiro e, como eu não tinha mais nada a fazer em meu trabalho, estava escorado numa das velhas geladeiras que me faziam companhia na oficina. Trabalhava numa oficina de reforma de geladeiras; meu ofício consistia em ajudar na reforma e atender os fregueses, quando o meu patrão estivesse fora.

     Braços cruzados, olhar perdido nos carros que passavam pela avenida; saboreava o cheiro de asfalto molhado que me lembrava a infância. As raras manhãs de domingo, em que eu ficava na janela observando as plantas se contorcendo sob a chuva no quintal e sentindo o cheiro de terra molhada que se espalhava pela casa. Fazia sentido: a inocência da infância e a pureza da terra, as descobertas da adolescência e a sujeira do asfalto.

     Estava nessa, quando fui tragado de volta à realidade por um vulto que passou bem em frente aos meus olhos. Ainda pisquei como se fosse apenas alguma sujeira na visão. Olhei pela calçada: um rapaz de mais ou menos vinte anos, pele morena, cabelo encaracolado e olhos verdes. Estava encharcado, sem camisa e segurava uma bola vermelha de plástico. Ele se aproximou e parou bem na minha frente. Olhei os pingos de chuva que escorriam pelo seu rosto e fiquei impressionado pela inocência que seu olhar expressava. Uma pureza que só encontramos nos olhos das crianças e de alguns animais. Fiquei sem ação, esperando por alguma palavra, algum gesto, qualquer coisa que me tirasse daquele torpor. Estava tão perto que pude sentir o calor de sua respiração e ver os seus olhos descerem, pousarem na bola e voltarem para os meus. Percebi que ele ia dizer algo:

     - Ei, vamos jogar bola? - Perguntou-me, com um sorriso que eu nunca vou esquecer.

     Senti-me estranho, atravessado pelo mundo, sem respiração e mais uma vez paralisado, enquanto ele me olhava com aqueles olhos grandes e expressivos, esperando minha resposta. Pensava mil coisas ao mesmo tempo, mas não conseguia formar uma simples frase.

     - Mas está chovendo - resmunguei.

     Foi a única coisa que consegui dizer. Mas minha vontade era de parar o trânsito, puxa-lo pela mão e brincar com ele o dia inteiro, ou até que alguém nos tirasse da rua.

     Diante de minha resposta burra ele não se mostrou decepcionado, apenas continuou sorrindo e se foi, correndo na chuva com sua bola vermelha. Logo atrás dele veio um senhor andando depressa, que aparentava ser seu pai.

     - Desculpe, ele tem problema - disse, enquanto passava por mim.

     Problema?! Problema temos nós, do alto de nossa arrogância, massacrando sonhos e vontades, apenas para manter a pose de animal racional. Não temos nada por achar que temos tudo, somos patéticos. Senti meus pelos se arrepiarem e meu coração acelerar, como se só agora meu corpo correspondesse ao que havia se passado em minha alma. Tudo isto durou menos de um minuto, mas me deixou embriagado pelo resto do dia, pensando no maravilhoso contato que havia travado com aquele rapaz. Eu nunca mais o vi, e tenho certeza de que nunca mais verei. Nunca havia me sentido assim tão perto de Deus.




(Wálisson Menezes)