O garoto tinha apenas sete anos nessa
época, mas já se mostrava atrevido e desafiador como seria enfim na vida
adulta. Era filho de pais humildes e pouco instruídos, mas muito amorosos. Os
três moravam numa casa simples, mas com um quintal enorme, o palco perfeito
para as brincadeiras megalomaníacas do menino. Brincava de polícia e ladrão
quando algum amigo vinha visitá-lo. Gostava de ser o ladrão. Achava mais divertido
fugir do que perseguir, e além do mais, odiava a ideia de ter que prender
alguém, apesar da pouca idade, via algo de muito errado em prender um ser
humano com os mesmos direitos que ele. Não diziam na televisão que somos todos
iguais?!
Quando estava sozinho brincava de ser
Deus. Decidia o destino de formigas, minhocas, borboletas, tatuzinhos e
qualquer outro inseto azarado que cruzasse seu caminho. Como toda criança, era
cruel. Ás vezes decidia que o inseto não morreria, mas ficaria sem asas ou
patinhas, para pagar por seus pecados. A avó, religiosa, dizia que todos nós
éramos pecadores, por isso sofríamos. Se o homem, tão amado por Deus, era
pecador
, então os insetos provavelmente também eram.
Quando tinha vontade de brincar com seus
carrinhos, não se contentava em simplesmente os empurrar de um lado ao outro:
pegava um pedaço de tijolo e rabiscava o chão de cimento do quintal, desenhando
estradas enormes e tortuosas por todo o terreno. Ás vezes, ficava tão encantado
com o seu trabalho – ruas, avenidas, praças – que desistia de brincar. Ficava
só olhando e apreciando sua obra. Até vir a chuva e apagar tudo, deixando-o
furioso com o tal São Pedro, que diziam ser quem a controlava. Ia pro quintal e
esbravejava debaixo d’água. Braços erguidos, punhos fechados, olhava para o céu
e xingava o santo de todos os inocentes palavrões que conhecia. Segundos
depois, quem estava xingando era sua mãe:
- Sai da chuva, menino encapetado!
Certa vez, cansado de ser Deus, resolveu
brincar com algo mais perigoso do que insetos. Olhou para a rampa que ligava a
varanda ao quintal. A rampa tinha mais de um metro e meio de altura e se
estendia por uns três metros. Devido à altura, sua mãe sempre o alertava a não
brincar perto dela, temendo uma queda da parte mais alta. Como já foi dito, o
garoto era atrevido o suficiente para encarar o medo de cair, e desafiador o
bastante para desconsiderar os vários alertas de sua mãe. Esperou a velha se
entreter com a conzinha lá dentro, pegou seu velotrol e resolveu brincar de
motoqueiro.
Empurrou com cuidado sua motocicleta para
não chamar a atenção da mãe e subiu até o ponto mais alto da rampa. Ficou lá parado
um tempo, concentrado, como faziam os jogadores de futebol antes de bater um
pênalti. Pensou na vida. Lembrou dos olhos azuis e do sorriso de sua namorada
do jardim de infância e subiu no velotrol. Fez o sinal da cruz, respirou fundo
e acelerou! Com o garoto pedalando o mais rápido que podia, o velotrou desceu a
rampa embalado, e, quem observasse a cena, poderia até achar que o menino
sairia ileso da brincadeira. Mas não, após deixar metade da rampa para trás, o
garoto calculou mal as pedaladas, embolou-se nos pedais, capotou e deu com nariz
no chão, literalmente.
Com o barulho, a mãe assustada veio
gritando, pálida feito um fantasma. Estatelado no chão, embaixo do velotrol que
ainda tinha a rodinha dianteira a girar, o menino já chorava como um
recém-nascido. Chorava pela dor e pelo terror em ver todo aquele sangue
escorrendo de seu nariz e sujando sua roupa. Mas ao mesmo tempo, sentia-se
muito bem, por ter feito o que queria. Mesmo sem saber se daria certo, mesmo
conhecendo o perigo, esta foi a primeira vez que o garoto encarou o medo de
frente e lançou-se ao desconhecido.
Que saudade eu sinto deste garoto que um
dia eu fui!
(Walisson
Menezes)