Agarrava-me a cada cigarro, antes de bater o ponto e começar a trabalhar, como um náufrago se agarra a qualquer pedaço de madeira à deriva no oceano. E torcia. Torcia o tempo todo. Torcia para que os minutos passassem bem devagar, naquele pequeno espaço de tempo livre que eu tinha. Torcia para que a noite fosse tranqüila e o tempo passasse rápido, depois que começasse a trabalhar. Torcia também, para que aquela fábrica gigantesca voasse pelos ares, em chamas e pedaços incandescentes, iluminando a noite como fogos de artifício. Torcia para que o Dr. Belini, nosso “querido” presidente, tivesse um infarto fulminante, forçando a Fiat a decretar Luto Oficial no dia seguinte e...ops... eu disse “Fiat”?! Poxa, que vacilo! Dado o teor da realidade que vou narrar, talvez seja melhor não citar nomes. Me perdoem, não vai acontecer de novo.
Como eu ia dizendo, lá estava eu, fumando cada cigarro como se fosse o último. Já era noite alta, 22:36 para ser mais exato. Trabalhava no terceiro turno, como Operador de Processo Industrial (Peão), na fábrica de automóveis. Foi nessa época que começou a fazer parte da minha aparência natural, duas grandes sombras negras sob meus olhos, as temíveis olheiras. Já ouvi dizer que a cada ano trabalhado no terceiro turno, ou seja, sem dormir de madrugada, você envelhece três anos! Se isso é verdade ou não, não importa; o fato é que eu estava péssimo. Com a barba por fazer, o cabelo grande e despenteado, botas sujas, uniforme manchado de graxa e as olheiras.
Apesar de meu estado, estava em ótima companhia. Dividia meus cigarros com os Racionais Mc’s, o The Clash e a maravilhosa Edit Piaf. Mano Brown me falava de São Paulo e o que estava rolando no Capão Redondo. O pessoal do The Clash veio com uma história de que Londres estava se afogando, mas que eles estavam vivendo no rio Tâmisa, então não iam se afogar. Olhei intrigado para Joe Strummer, sem entender, e perguntei se lá em Londres eles também tinham problemas com enchentes, como em Belo Horizonte. Piaf, que ouvia a tudo calada, deu sua estrondosa gargalhada, o que fez todos nós rir também. Ela era linda. Enquanto conversava com eles, pensava na Fábrica e na linha de produção que me aguardava para as próximas horas de tortura.
É quase impossível descrever com precisão, como é a Fábrica. É considerada uma das maiores do mundo. Claro que não é nada, comparada a fábrica da Hyundai, na Coréia do Sul, mas é bem grande. Como uma cidade, é repleta de máquinas de alta tecnologia, e constitui o corpo e o cérebro da empresa no Brasil.
Mas toda essa tecnologia e sofisticação é produto de anos de um grandioso aparato de repressão aos funcionários e eficientes estratégias de marketing, passando a imagem de um ótimo lugar para se trabalhar. A repressão na fábrica, é herança do facismo italiano da década de 1920, quando a empresa apoiava Benito Mussolini, em troca de alguns bilhões de liras em contratos militares.
Quando a empresa iniciou suas atividades, no final da década de 1970, foi recebida em Minas Gerais com a promessa do governador, de que o povo era ordeiro e não fazia greves. Dois anos depois, a fábrica viveu duas grandes paralisações consecutivas, contrariando as expectativas da empresa e do estado. Logo, a empresa tomou as devidas providências, se valendo de intensas repressões policiais para silenciar os protestos. O que resultou inclusive na morte de um funcionário em 1979, durante uma manifestação. Instalando o “Projeto de Qualidade Participativa” a empresa adotou mudanças em seu organograma funcional, na tentativa de afastar o sindicato da fábrica e reduzir sua influência entre os trabalhadores. Este projeto visava, simultaneamente, uma maior qualidade de seus produtos e a recomposição da mão de obra usada pela empresa, através de um processo de demissão/seleção e seleção/treinamento.
A figura do “RePO”, ou “Representante Por Oficina”, foi criada nessa época. A função do RePO é mediar os conflitos dentro da Fábrica. Mas esta é apenas sua imagem simbólica. Nas trocas de turno, eles ficam postados nas portarias para vigiar os movimentos daqueles que se dirigem aos sindicalistas ou simplesmente prestam atenção às mensagens veiculadas pelo carro de som do sindicato. O papel empenhado pelo RePO, entretanto, transcende a simples tarefa de vigilância sobre os trabalhadores. Sua função maior, e para muitos ainda não percebida, é a de substituir o sindicato na relação com os operários, para dar-lhes a falsa impressão de que a empresa é capaz de, sozinha, solucionar todo e qualquer conflito que impeça o bom andamento da produção.
O resultado dessa política repressiva de mais de duas décadas de funcionamento, é o quadro que eu presenciei nos anos trabalhados na Fábrica: o sindicato é uma piada para os funcionários, festas esporádicas são dadas com sorteios de prêmios “incríveis” como jogos de panela, CD Players e suqueiras elétricas. As únicas greves realmente importantes dos últimos trinta anos foram as duas primeiras. Fui advertido duas vezes por pegar os folhetos do sindicato. Eu nunca tive contato próximo com esse pessoal que ficava pregando com os carros de som e distribuindo folhetos na porta da Fábrica, mas é claro que eu estava do lado deles. Pegava os folhetos e deixava nos vestiários, onde os peões poderiam ler, sem estar sendo vigiados.
Infelizmente o tempo passou rápido e eu fui para o vestiário trocar de roupa e pegar meus equipamentos. O vestiário enorme, com suas dezenas de metros de extensão, estava sempre uma bagunça nessa hora. Os peões gritavam, gargalhavam e trocavam de roupa. Nunca era agradável ver aquele monte de homens de cueca, mas era sempre divertido trocar ideia com alguém ou apenas ouvir o que eles conversavam. Como quase todas as noites, eles falavam de futebol ou alguma notícia do momento. Falavam de suas mulheres e filhos também. Brincavam o tempo todo uns com os outros. Situações tensas ou engraçadas da noite anterior na linha de produção, colegas que foram mandados embora, repreensões por falhas na produção, tudo isso era passado a limpo naqueles poucos minutos ali no vestiário. Em clima de descontração, tudo virava motivo de piada. Talvez esse bom humor, fosse nossa única ferramenta para não enlouquecermos naquele lugar.
Nas próximas nove horas, a maioria de nós, chegariam ao máximo de seu esforço físico a cada minuto. Correríamos pela madrugada, tentando desempenhar nossas funções, no tempo exigido pela empresa. Depois de algum tempo você se acostuma e tudo passa a ser suportável. Mas mesmo assim, ainda iríamos pra casa sempre com uma dor diferente, um machucado novo a cada noite. E a cada segundo aumentaria nosso sentimento de pouca importância, em meio a todo aquele equipamento, em meio a todas aquelas máquinas.
Enquanto fechava o cadeado do meu armário e me dirigia em passos vagarosos rumo a linha de produção, ainda ouvi um dos Peões comentar em voz alta com seus colegas:
- Existem três coisas que transformam o camarada em Homem: o Exército, a cadeia e a linha de produção da Fiat Automóveis.
(Wálisson Menezes)