4 de abr. de 2012

O Catador e a Economista




     Ela pegou a bolsa em cima da cama, despediu-se da mãe e da gatinha de estimação, benzeu-se e saiu correndo porta afora. Estava atrasada, como sempre. O ônibus para a faculdade sairia em poucos minutos e se ela o perdesse, teria de esperar mais meia hora para pegar o próximo. Esta era uma possibilidade que ela não gostava nem de imaginar, pois desta forma, teria meia hora a menos para fazer a prova no primeiro horário. Apesar de ser uma boa aluna, a matéria da prova de hoje não havia sido muito bem absorvida por ela, devido ao pouco tempo que tinha para estudar. Por isso, essa moça bem vestida, de banho tomado, com os cabelos molhados cheirando a condicionador, correndo feito uma louca pela calçada, é ela.
     Estava já no último semestre da Faculdade de Economia. Vivia economizando cada centavo, tanto em respeito á batalha de sua mãe, viúva, para pagar a mensalidade do curso, quanto para poder beber sua tão amada cervejinha no final de semana. A mãe trabalhava como empregada doméstica num bairro nobre da cidade. Uma parte do salário ia para as despesas da casa, e a outra parte era somada a uma parcela da antiga poupança, feita justamente no intuito de garantir a faculdade da filha. Ela também trabalhava. Fazia estágio. E seu pequeno salário tinha o mesmo destino do salário da mãe, com exceção de pequenos e eventuais gastos com livros, passagens de ônibus e a já citada cervejinha no final de semana, porque ninguém é de ferro.

     Graças à necessidade, havia aprendido a economizar com maestria nesses últimos quatro anos. Talvez por isso, havia sido escolhida no semestre anterior, por votação unanime, para ser a Tesoureira da turma, durante as preparações para a formatura. Além de ser uma das alunas mais aplicadas, todos conheciam sua incrível habilidade no trato com o dinheiro, e, o mais importante, sem ser sovina. Costumava sair de casa levando uma pequena quantidade de dinheiro, tanto para não gastar além do necessário, quanto por motivos de segurança. Mas nesta tarde, é diferente. Ela carrega uma quantia equivalente a mais de dois salários mínimos, que será repassada a um dos integrantes da Comissão de Formatura.
     Apesar de toda a correria, quando ela finalmente chega ao ponto de ônibus, que nessa hora costuma estar cheio de estudantes, ele estava vazio. Deduz então, decepcionada, que seu ônibus já passou. Senta-se no banco e fica a olhar o céu recém escurecido. Está impaciente. Agora tem meia hora a menos para fazer uma prova, que, mesmo tendo o tempo inteiro da aula, não conseguiria fazer direito. Está também, muito preocupada. A região onde espera o ônibus é bastante deserta e a quantidade de dinheiro contida em sua bolsa é maior que dois meses do salário de seu estágio. Cada pessoa que dobra a esquina, a dez metros de distância, já é suficiente para acelerar seu coração.
     Agora, prestemos atenção àquele rapaz esguio, de pele escura e roupas simples, que vai pela calçada da mesma rua que ela, porém, há mais de cinquenta metros de distancia. Ele olha para o chão e pensa na vida. Na mãe doente, o dia todo deitada na cama do barraco de madeira em que moram os dois. Lembra-se do falecido pai, que, se não tivesse morrido de cirrose, anos atrás, com certeza estaria cuidando bem dos dois. Pensa em como seu dinheiro de catador não mais tem sido suficiente para cobrir os remédios da mãe e o arroz com feijão de cada dia. Tem vontade de fugir. Fugir para algum lugar onde ninguém o conheça. Um lugar onde ninguém dependa dele para sobreviver. Onde ele possa recomeçar do zero. Com as mesmas oportunidades que as outras pessoas. Onde ele possa brincar, estudar e ter o que comer, sem precisar abandonar tudo isto para trabalhar. Ter pai e mãe saudáveis. Uma casa de verdade, e não o barraco dividido com ratos e baratas. Um lugar onde, enfim, ele não precise sobreviver sempre de restos.
     O rapaz enxuga as lágrimas que teimam em fugir dos olhos e continua seguindo. Lá na frente avista uma garota no ponto de ônibus. Olha para trás e ao redor mas não vê ninguém. Está assustado com seus pensamentos. Ele não seria capaz daquilo. Havia aprendido a se virar desde pequeno, mas nunca ousara roubar. Vários amigos zombavam dele por causa disso. Nunca roubara e nunca entrara pro tráfico, mesmo passando pelas maiores dificuldades. Mas desta vez as coisas estão ainda mais difíceis e ele decide, pela primeira vez, agir sem pensar tanto antes.
     Ela está curiosa, mas também muito tensa. O rapaz que vem vindo lá na frente não tem cara de ladrão. “Como se ladrão tivesse cara, neh, sua idiota!” pensa consigo, fingindo distração. Abraça forte a bolsa e finge não estar prestando atenção a cada passo do rapaz. Tem medo. Pensa em sair correndo dali. Mas estranhamente, algo naquele rapaz transmite uma sensação diferente, boa.
     O rapaz tem o coração pulsando na garganta. Está a dez metros de distância. Ensaia mentalmente cada palavra. Coloca uma das mãos por debaixo da camisa, na altura da cintura, para parecer armado. Aproxima-se mais e diz:
     - Passa a bolsa, moça, perdeu!
     O coração da garota pulsa dentro do peito como uma bomba. Mas ela finge tranquilidade:
     - Que isso, moço, só tenho o dinheiro da passagem! – diz ela.
     - Não interessa, passa a bolsa pra cá! – grita o rapaz.
     - Olha aqui. Só tenho uns trocados para a passagem, documentos e bobagens de mulher. Nada que sirva para você – ela diz, abrindo a bolsa para que ele veja – sou estudante. Minha mãe é viúva e passamos necessidade para pagar minha faculdade.
     Ele pensa. Nunca havia passado por aquela situação. Não sabia como agir. Pensava que a garota fosse assustar-se e entregar-lhe tudo, mas não. Ela parecia tão tranquila, tão sincera. Gostaria de ter conhecido-a em outra situação. Parecia ser uma menina legal.
     - Ah, na verdade, eu tenho algo aqui pra você, sim! – diz ela, revirando a bolsa.
     O rapaz espera. Fica intrigado com a expressão bondosa no rosto da menina, enquanto ela procura algo na bolsa. Ele está completamente desarmado, agora. Tanto fisicamente, quanto espiritualmente.
     A garota saca um bombom da bolsa e estende ao rapaz. Os olhos dele iluminam-se. Nunca antes, alguém havia oferecido a ele um bombom. Sua mãe nunca teve condições de gastar dinheiro com bombons. Seu coração continua acelerado, mas agora é diferente. Sente-se bem. Mas não sabe se saí correndo dali ou se aceita o bombom. Talvez aceite e sente-se ao lado dela para conversar um pouco, saber seu nome, o que ela estuda. Sempre sonhou em fazer uma faculdade também.
     O rapaz então, aceita o bombom. Retira a mão de debaixo da camisa, sem pensar. A garota repara que ele não está armado, aliás, como já suspeitava. Seus olhos se encontram enquanto ele apanha o bombom. Ele percebe que mostrou-se desarmado e não consegue mais disfarçar, acaba deixando escapar um sorriso tímido. Ela ri também, pensando que aquele rapaz na sua frente talvez seja boa pessoa. Pensa nas dificuldades que ele deve estar passando para tentar assaltar alguém.
     O rapaz fica olhando para o bombom, sem coragem de retirar a embalagem e comer. Aquele bombom tem para ele, um significado muito maior do que podemos imaginar. Sua vontade é de guardar aquele bombom para sempre, como lembrança. Como uma lição. Na única vez que aquele rapaz resolveu ir contra a sua moral, a vida lhe recompensou com um bombom. Ele então entendeu que ainda havia esperança.
     Nesse momento, a atenção dos dois é capturada pelo ônibus que vem dobrando a esquina. Ela se levanta e dá sinal. Olha para o garoto mais uma vez. Sem pensar muito, abre a bolsa e retira outro presente: o dinheiro que ela costumava economizar durante a semana para a cerveja com as amigas.
     Os dois nunca mais irão se encontrar e a garota talvez nunca imagine isso, mas, o dinheiro que ela estava guardando para a cerveja no fim de semana, agora vai servir para os remédios que a mãe do rapaz tanto precisa.



(Walisson Menezes)