7 de mar. de 2012

Laika




     Laika acordou cedo naquele dia, como sempre. Abriu os olhos castanhos e ficou olhando durante algum tempo para os carros apressados que passavam pela rua. Levantou-se preguiçosamente, balançou-se para expulsar o pó da calçada que cobria seu pequeno corpo e se pôs a andar. Havia sido batizada com esse nome por sua antiga família, como homenagem ao primeiro ser vivo a orbitar o planeta terra, a cadela Laika.
     Os sonhos ainda quentes da noite bem dormida dançavam em sua mente. Havia sonhado com sua infância, seu antigo lar, sua casinha sempre quentinha, a comida que não era das melhores mas nunca lhe faltava, e o carinho, que não era abundante mas lhe era mais prazeroso que qualquer outra coisa. Quando era ainda filhote podia fazer o que quisesse. Deitava-se no tapete, no sofá, nas camas. Adorava mastigar sapatos, chinelos e o que mais servisse para acalentar a coceira, provocada pelo crescimento de seus dentes. A vida foi ótima para ela até certo dia; quando percebeu que as malas estavam sendo preparadas, os móveis sendo desmontados e os objetos decorativos encaixotados. Ela não entendia o que estava para acontecer, mas lembrava-se claramente do choro da criança, que sempre vinha ate ela sorrindo e brincando, do afago de despedida da mãe da criança. Lembrava-se do pai abrindo a porta do carro para que ela pulasse lá dentro. O automóvel tocando para uma região distante, novos cheiros, novos sons, um aperto inexplicável no peito. Até que de repente, o carro para próximo a um terreno baldio. O chefe da família, sua família, abre a porta, ela salta na calçada, ele fecha a porta e ela fica esperando-o descer também. Mas em vez de descer, ele acelera e sai cantando pneu, como que para evitar que ela pudesse correr atrás do carro. Laika ainda esperaria-o durante todo o dia, no mesmo lugar. Esperaria até que seu estômago começasse a doer de fome e ela tivesse que sair farejando algo para comer.
     Quem a visse andando naquela hora da manhã, acharia que estava apenas passeando por aí, sem rumo. Mas não, ela sabia muito bem aonde estava indo. Ia tomar seu café da manhã na padaria onde sempre lhe davam os pães que sobravam do dia anterior. Os pães, apesar de duros, matavam sua fome e eram sua única refeição garantida.
     Quando chegava á porta da padaria, a balconista assim que podia, caminhava até a cozinha e lhe trazia os pães. Laika comia com gosto, era eternamente grata pela caridade dos funcionários da padaria, mesmo que não tivesse consciência do que estas palavras significam: eternidade, gratidão e caridade. 
     Toda a vizinhança a conhecia. Seu caminhar gracioso, seu olhar inocente e simpatia encantavam a todos. As crianças que passavam por ali a caminho da escola, nunca deixavam de brincar com ela. Os malandros que frequentavam o bar da esquina, sempre lhe davam pedaços de torresmo, linguiça e moela de frango.
     Assim ela ia vivendo sua nova vida de cadela de rua, que em muitos aspectos, era mais divertida do que a vida dos outros cachorros, sempre presos em casa. Apesar de carregar algumas cicatrizes, por não se entregar a qualquer cachorro que buscasse o calor de seu corpo, era feliz.
     Foi feliz até a hora do almoço, daquele mesmo dia, quando farejou um cheiro de carne assada. Pela intensidade do cheiro, deveria estar a menos de um quilômetro de distância, provavelmente do outro lado da avenida que cortava o bairro. Seguindo seu instinto e sua fome, lá foi ela em busca da fonte daquele cheiro delicioso. Talvez pela falta de atenção devido à expectativa de uma boa refeição, talvez por ainda pensar no sonho da última noite, Laika atravessou a avenida sem olhar para os lados. Um dos carros que vinham furiosos em sua direção, não conseguiu desviar completamente e atingiu Laika com a lateral do parachoque. Com o forte impacto, a cadela foi arremessada de volta a calçada de onde viera. Vários metros adiante, o condutor do veículo, preocupado, parou para avaliar os danos. Olhou o parachoque por um lado, olhou pelo outro, agachou-se para ver melhor, coçou a cabeça, voltou para dentro do carro e deu a partida.
     Laika estava confusa. Tremia e se debatia na calçada, mas estranhamente não sentia dor alguma. Não se preocupou em entender o que havia acabado de acontecer. Não mais sentia o cheiro de carne assada, não mais se lembrava do sonho da última noite.
     Ali, naquela calçada, sob o sol do meio dia. Em meio a todo o barulho dos carros em alta velocidade, Laika sonhou novamente. No sonho, ela estava deitada no colo da mesma criança, que certo dia havia se despedido dela chorando. A sua volta, estavam também o pai e a mãe, sorrindo e acariciando sua cabeça. A mesma família que a havia abandonado um dia, agora a recebia de volta em mais um sonho. Um sonho que desta vez seria eterno.


 

(Wálisson Menezes)