Sem nós,
sua vida seria um caos. Sair na rua seria um ato de coragem, provavelmente
evitado ao máximo por todos. Sem nosso trabalho, você e sua família estariam o
tempo todo expostos à doenças graves e horríveis, daquelas monstruosidades que
a gente vê nos livros de medicina. Se deixássemos de trabalhar por apenas uma
semana, vocês estariam fodidos, para não dizer coisa pior. Apesar disso, você
costuma nos desprezar. Faz caretas quando passamos, cospe no chão, faz
piadinhas ou na melhor das hipóteses, nos ignora. Provavelmente o grande
causador desse desprezo, seja nosso baixo salário, afinal, nesta sua sociedade
só é bem visto quem ganha bem. A propósito, você deve estar incomodado com a
forma como eu me refiro a “vocês”, excluindo-nos de sua sociedade. Mas, nós não
somos excluídos dessa mesma sociedade o tempo todo?! Exclua-nos também na hora
de ressaltar suas doenças e defeitos.
A sociedade nos chama de “lixeiros”, mas
não poderiam estar mais enganados. Nós somos Coletores de Lixo. Lixeiro é quem
produz o lixo, ou seja, vocês próprios. Irônico, não?! Os lixeiros são vocês! Chamam-nos
de algo que na verdade vocês é que são. Nós arrumamos a sua bagunça. Vocês, a
propósito, produzem em média 1 quilo de lixo por dia. Isso mesmo, 30 quilos de
lixo por mês. No final da vida, se vocês viverem mais ou menos até os 70 anos,
terão produzido cerca de 26 toneladas de lixo. Quantidade suficiente para
encher um estádio de futebol.
Ser coletor não é tão ruim quanto as
pessoas pensam, nós nos divertimos bastante. Cada dia é diferente do outro. Não
trabalhamos aprisionados e sentados em escritórios, sedentários, bufando de
stress e preocupação o dia inteiro, como aqueles engravatados respeitados e bem
vistos pela sociedade. Sou quase um
maratonista. Corro mais ou menos 20 quilômetros por dia e nem fico tão cansado.
Nós temos a saúde impecável, devido ao tanto que corremos. Muitos de nós são
realmente maratonistas, como o querido irmão Solonei Rocha, vencedor da
Maratona de São Paulo de 2012.
Se vocês tivessem ideia da importância do
nosso trabalho para suas vidas, seríamos idolatrados por onde passássemos. Nas
ruas, seríamos recebidos com sorrisos, presentes e cumprimentos. Gritos de
guerra, buzinaço dos carros, palavras de incentivo, da mesma forma que os
chineses fazem com seus vestibulandos nos dias das provas.
É claro que nossa profissão não chega nem
perto de ser um mar de rosas. Somos mal pagos, sofremos preconceito e corremos
o risco de nos machucar o tempo todo. Você já parou para pensar que um simples
copo quebrado em sua casa, pode ser o causador de um grave acidente com algum
de nós? Para diminuir um pouco o risco de acidentes, usamos luvas bem grossas.
A princípio elas servem, obviamente, para proteger nossas mãos, mas um dia
desses, meu par de luvas encontrou outra finalidade...
Estávamos trabalhando na região do centro
da cidade, onde o lixo é coletado à noite devido ao tráfego intenso durante o
dia. Além do motorista, o Bocão, meus companheiros são o Maroto, que tem sempre
um sorrisinho maroto no rosto, o Pé de Cana, ou simplesmente Cana, apelido que dispensa
explicações, e o Joça, que não faço ideia porque é chamado assim. Seria muito
fácil ficar reclamando de nosso emprego o tempo todo, afinal, motivos nós temos
de sobra. Mas preferimos nos divertir durante nosso expediente, cantando,
brincando e conversando com as pessoas. Nunca faltamos com o devido respeito a
ninguém, mas algumas pessoas não gostam de brincadeiras, ou sentem-se
desrespeitadas simplesmente por falarmos com elas. Devem se achar bons demais
para que um simples coletor lhe dirija a palavra. Este parece ser o caso do
jovem que estava abraçado com uma garota na esquina próximo a um dos bares da
região. Um moleque de uns vinte e poucos anos, com uma menina linda Quando
passamos próximo ao casal, Maroto brincou com eles dizendo:
- Que sorte, hein, amigo!
A menina sorriu encabulada olhando pra
baixo, mas de forma alguma, pareceu incomodada ou ofendida. Já o rapaz, olhou
para nós com cara de nojo e desdém. Obviamente, Maroto estava fazendo um
elogio à menina, que era realmente muito bonita, e meio que parabenizando o
cara por estar com ela. Se pararmos para pensar, foi um grande elogio. Mas
nesse mundo onde vivemos, um elogio sem nenhuma conotação sacana, pode ser
interpretado como uma ofensa, se proferido pela boca de um Coletor de Lixo.
O rapaz então, quando Maroto já estava
distante, gritou levantando o dedo médio:
- Morre de inveja, cheiroso!
Quando vi e ouvi o que o cara disse, perdi
a cabeça e desci do caminhão correndo atrás do sujeito. Ele, que tentou se
passar por fodão pra menina, acabou se mostrando um comédia, correndo
desesperado pra dentro do bar da esquina.
- Parou, Bocão, parou! – gritou Cana,
também correndo pra dentro do bar, seguido por Maroto e Joça.
Peguei o moleque atrás da mesa de sinuca e
sem pensar, fui tirando a luva da mão direita:
- O que cê disse, frango? – Perguntei,
descendo a luva na orelha dele.
- Ai, ai, peraí, irmão, peraí! – gritava
ele, tentando se proteger da luvadas.
- Agora agente é seu irmão, franguinha, cê
tá louco?! – Perguntou Cana, que já chegou dando cocões na cabeça do menino.
Maroto, que nunca perdia a esportiva e
também vinha chegando, brincou:
- Calma, cana, calma! Vai matar o menino
com esse bafo de cachaça!
- Deixa o pé de cana, sô! É bom que o bafo
dele deixa o peru bêbado antes da gente matar ele! – Disse Joça, gargalhando
alto e estridente, fazendo todos nós rirmos junto e o garoto tremer de medo.
Depois de mais alguns segundos dando
luvadas no menino e rindo feito loucos, nos sentimos satisfeitos e deixamos ele
ir.
- Corre, Forest, Corre! – Gritou um dos
cachaceiros do bar, também caindo na gargalhada.
O Playboy foi correndo assustado para os
braços da menina linda que estava com ele, que se for esperta, não vai mais
estar em breve. E nós, aproveitamos que já estávamos no buteco e acendemos cada
um um cigarro, enquanto esperávamos Cana beber seu trago, também aproveitando a
oportunidade.
E vocês, Lixeiros. Respeitem os Coletores!
(Walisson Menezes)