O baque da porta foi tão forte que fez pular a agulha do toca discos e balançar o vinho do copo em cima da caixa de som. Eu continuei onde estava quando ela saiu com os olhos úmidos, furiosa. Fiquei deitado no tapete, com as mãos apoiando a cabeça e os olhos pousados na porta fechada. É estranho como estes momentos intensos reproduzem todo um filme dentro de nossas mentes.
Lembrei-me da primeira vez que ela entrou por aquela mesma porta, com seus cabelos levemente ruivos e molhados pela chuva que caia lá fora:
- Hum, então é aqui que o Diabo dorme – brincou ela.
Era setembro quando a conheci, e a última coisa que passava pela minha cabeça naquele momento era me apaixonar de novo. Mas, como estamos cansados de saber, a última coisa com a qual se preocupa o coração é com o que pensa a cabeça. E a minha estava completamente focada no Vestibular, que seria em pouco mais de dois meses. Eu havia deixado até de trabalhar para me concentrar no cursinho, nos livros, apostilas e sites na internet. As únicas atividades recreativas as quais me dedicava neste período, eram a literatura, minha mais antiga paixão, e os bares nos finais de semana. A literatura caía bem nessa época, pois como eu tinha mesmo que estudar para a redação do Vestibular, exercitava minha escrita com meus contos e poemas. E os bares caíam bem porque, ora, eles sempre caem bem! Certo dia, resolvi dar um tempo em tudo aquilo: matei a aula do cursinho e fui a um show no centro da cidade, ouvir um pouco de música e beber algumas cervejas. Foi lá que a conheci.
Depois dessa noite, meus poemas e contos atingiram outro nível. Aprendi Geografia conhecendo melhor a cidade e Geometria observando a arquitetura dos edifícios. Melhorei minha Matemática calculando o quanto estava gastando com todos esses rolés. Toda aquela Matemática, Física e Biologia de cursinho, deram lugar à Poesia, Filosofia e Literatura. Ela também escrevia e nossas conversas sobre poesia eram memoráveis:
- Por que você não me mostra seus poemas? – eu perguntava.
- Porque não há nada que você possa aprender com eles – ela dizia.
- E por que você pensa assim? Um poeta não pode aprender com o outro?
- Só se for um péssimo poeta! – respondia ela, triunfante.
Passeamos por toda a cidade, com garrafas de vinho, cigarros e poesia escorrendo pelos lábios. Todo dia construíamos uma nova realidade, na qual tudo à nossa volta era apenas brinquedo em nossas mãos. Conversávamos sobre política nos bares do Edifício Maleta, deitávamo-nos na grama da Praça do Papa para apreciar as estrelas e falar sobre Astronomia. Subíamos nos arcos do Viaduto Santa Tereza para abraçar a cidade. Numa dessas madrugadas invadimos a escola onde ela havia estudado, apenas para sentir o prazer de ficar num local proibido, só pela adrenalina mesmo. Foi lá que nos beijamos pela primeira vez.
É claro que a essa altura já estávamos completamente apaixonados um pelo outro. Mas éramos cautelosos com nossos sentimentos. Ou talvez fossemos apenas medrosos. Mas tínhamos razão para o ser, já havíamos nos machucado muito no passado. Preferíamos ser racionais quanto a isto:
- A maioria das histórias de amor são uma farsa! – dizia eu – não é amor verdadeiro.
- Eu também acho! – ela concordava.
- São duas pessoas que se gostam, se querem, mas é tudo baseado em proveito pessoal, egoísmo. Existe prazer, mas não amor.
- Eu concordo! – dizia ela, sorrindo.
- O amor tem que ser reinventado! – gritava eu. Ela também gritava, e então, acendíamos um baseado e brindávamos com nossas garrafas de vinho, comemorando nosso “Amor Reinventado”.
Ás vezes passávamos em meu apartamento, no centro da cidade, para ouvir jazz, Samba e Bob Dylan. Certa vez, minha companheira de quarto estava por lá quando entramos. Assim que eu acendi as luzes ela gritou de susto:
- O que foi? – perguntei.
- Uma lagartixa! Ali, ó! Se escondeu atrás do sofá – Gritou ela, com os olhos arregalados, apontando para o sofá.
- Calma, pode ficar tranquila – disse eu - Essa é a Billie Holiday, minha companheira. Mora comigo há dois meses - Depois elas acabaram fazendo amizade.
Nem sempre era poesia o tempo todo. Quando brigávamos era terrível. Gritávamos e xingávamos um ao outro, mas sem graves ofensas. Tínhamos uma espécie de “dom” para brigar por coisas sem importância. No dia seguinte já estávamos conversando e brincando como se nada tivesse acontecido.
O ano correu solto e eu nem me dava conta do tempo passando. Meses depois de tê-la conhecido, recebi a notícia de que havia passado no Vestibular. Comemoramos em grande estilo: invadimos uma área restrita de uma empresa de mineração e descobrimos o mirante mais incrível de toda a cidade. Vimos o sol nascer por detrás das montanhas, tiramos várias fotos e prometemos um ao outro nunca ir lá com outra pessoa. Seria um segredo só nosso.
Todas estas memórias passaram em minha mente, como um filme. Tudo foi festa depois que nos conhecemos. Mas depois da briga de hoje, não sei qual será nosso futuro. Nunca havíamos brigado tão feio. Estávamos tão acostumados um ao outro, que agora era estranho nos imaginar separados.
Levantei-me do tapete, cheio de queimados de cigarro, procurei pela Billie mas ela também não estava por perto. Acendi um cigarro, enchi o copo de vinho e fui até a janela. Fiquei lá sentindo o hálito da cidade e pensando. Ela estava errada quando dizia que os poetas não aprendem uns com os outros.
(Walisson Menezes)