8 de fev. de 2012

Vulgo: Maurício

 (por Bárbara Angelo)

Houve um dia especial naquele laboratório, geralmente calmo, limpo, banhado em uma luz invariavelmente pálida e conformado a todas as regras e horários estabelecidos, aí inclusos os psicólogos pesquisadores que utilizavam as instalações.

O que tornou esse dia especial foi um dos ratinhos albinos, aquele conhecido como H-7381, de três meses e um dia de vida. H-7381, que talvez fosse conhecido entre seus pares como Maurício, mas não se tem certeza, se encontrava dentro de uma gaiola, como é de se imaginar, pois quase não se conhecem mais ratos fora de gaiolas, o que, naquele laboratório, correspondia, de fato, à realidade. H-7381 estava, portanto, em iguais condições às de qualquer outro dos ratos, do H-605 ao J-17, além da série CON.

Nem todas essas gaiolas, no entanto, eram do mesmo tipo: apenas 15 ratos, incluindo H-7381, se encontravam nas gaiolas do tipo Skinner e observados por jalecos.

Essas gaiolas são muito diferentes do restante, que apenas mantêm confinados os animais: elas dão choques elétricos. Há uma placa metálica no chão e todo tipo de iscas para ratos lá dentro, e quando acha-se adequado aperta-se um botão e assim transmite-se um choque ao rato – vê-se, tarefa de grande covardia, em vista da presença das iscas.

O que acontece é que, com a repetição desses choques, os ratos não pisam mais na placa de metal, mesmo que esta não mais libere a corrente elétrica em seus corpinhos – e era já nesse ponto do processo de condicionamento que se encontravam H-7381 e seus 14 camaradas, naquele dia especial.


H-7381 devia ter ainda um mês para viver antes que seu comportamento estivesse suficientemente corrompido, tornando-o inútil para o laboratório e apto para o extermínio em massa, executado a cada quatro meses em uma câmara de gás nos fundos do local.

Não se sabe de maiores minúcias do evento: H-7381 deve ter dormido e acordado como sempre, ou talvez não exatamente da mesma forma como acordara nos outros dias de sua curta e triste vida, pois naquele dia H-7381 viu algo a mais naquela isca e algo a menos naquela gaiola, ou o contrário, ou ainda alguma outra variação. É que H-7381 pisou na placa e comeu a ração que o atraía. Fez assim mesmo, como se não fizesse nada demais. E não fizera mesmo, de início, até que o jaleco que o observava terminou de piscar seus olhos, vencendo a incredulidade, e aceitou aquilo como realidade.

Não chegou a anotar nada em sua prancheta e chamou seus colegas jalecos. Todos se reuniram em torno da gaiola 10, do rato H-7381, onde assistiram à mesma cena quando ali colocaram outra porção de ração.

Aquele era um dia especial.

Naquela tarde o supervisor do laboratório esteve presente entre os jalecos, acrescidos em número, e assistiu também à cena.

E nada mais se fez além de anotações. A noite chegou e todos foram dormir, algo mudados. H-7381 também dormiu, mas sem se sentir mudado.

No dia seguinte o supervisor se juntou aos jalecos logo cedo com um plano. Colocaram H-7381 em uma gaiola, de número 8 mas idêntica à de número 10. H-7381, vulgo, talvez, Maurício, comeu a ração da mesma forma. Então eles colocaram outra porção e quando ali chegou o rato lhe desferiram um choque.

H-7381 pulou e voltou para o outro lado da gaiola. Depois de alguns segundos tentou de novo e correu de novo após outro choque. Os outros ratos assistiam a tudo de suas gaiolas comuns. H-7381 fez outra tentativa, e como levava outro choque resolveu ignora-los e comeu a ração mesmo assim.

O espanto foi geral entre os jalecos, que testaram a gaiola, confirmando seu pleno funcionamento. Sem saber o que mais fazer, meio desnorteados e já fora de seus horários, planos e programas, prosseguiram com o “experimento”.

H-7381 seguiu, também, ignorando os choques. Seu corpinho albino, no entanto, demonstrava as conseqüências de seguidos choques elétricos e da comoção que causavam, tremendo e arfando. E foi assim, após engolir mais uma porção de ração, e ainda sob o olhar do restante dos ratos, que seu coraçãozinho falhou, seu corpinho se encolheu e H-7381, vulgo, talvez, Maurício, morreu.

Os jalecos, estupefatos, ainda o olharam por alguns minutos. Sentiam-se, provavelmente e ao menos em algum nível, aliviados. Fizeram muitas anotações e encarregaram o estagiário de remover o pequeno cadáver e incinerá-lo. Fechou-se logo o laboratório e os jalecos foram embora, mais ou menos tocados pelo que viram.

No outro dia, lá estavam eles de novo, de volta aos seus programas e rotinas. Quatorze ratinhos em gaiolas de Skinner.

Eles não sabiam, no entanto, que o rato I-60, um rato gordinho, havia assistido a tudo de sua gaiola 9 no dia especial. Por isso ficaram muito surpresos ou, ainda, chocados quando I-60, o Gordo, se comportou da mesma maneira que H-7381.

No dia seguinte outros dois ratos agiam da mesma forma, enchendo suas pancinhas com as sucessivas porções de ração que recebiam daqueles jalecos. Os jalecos que, agora, se agitavam e confundiam, completamente perdidos de seus programas e objetivos, inclusos o supervisor e o diretor-chefe.

Relatórios foram redigidos ao longo dos meses que se seguiram, nos quais ratos ignorantes de choques se multiplicavam na população de cobaias, até se tornarem a maior parte.

Esses fatos, todos especiais, no entanto, não foram além das páginas dos relatórios, que eram de circulação interna, por razões político-econômicas e apesar da frustração e desligamento de quatro dos jalecos. O laboratório foi desativado mas não antes, é claro, que todos os ratinhos fossem levados, com as suas pancinhas cheias, para a câmara de gás e seus corpinhos incinerados.

Um mês depois as instalações foram reformadas e adaptadas para a realização de testes químicos de tinturas semi-permanentes. Nesses, até onde se sabe, nada ocorreu de extraordinário.

Aqueles jalecos que não se desligaram seguiram para outros laboratórios e encontraram outros ratos, dos quais não houve nenhum comportamento inesperado. E tudo o que ocorreu foi atribuído, inconscientemente, a alguma forma de força maligna que pairava sobre aquele laboratório.