17 de fev. de 2012

Futuro Proibido - Uma entrevista com Law Tissot



Alta tecnologia e baixo nível de vida é a síntese do movimento Cyberpunk. Em um mundo cada vez mais tecnológico e com mais miséria entre a população global este subgênero da ficção científica está se tornando, cada vez mais, uma realidade. Em um cenário assim surgem os indivíduos cyberpunk que, segundo William Gibson, autor de Neuromancer (considerado por muitos como o início do movimento), são uma espécie de “pichadores virtuais” que se utilizam de seus conhecimentos para realizarem protestos contra a sistemática vigente das grandes corporações.
LAW TISSOT é um cyberpunk. Utiliza-se de suas habilidades como artista multimídia para realizar seus protestos contra o futuro distópico para o qual a nossa sociedade está caminhando. Criador da Cidade Cyber, cenário que se iniciou nas histórias em quadrinhos e já alcançou o cinema – em curtametragens produzidos pelo criador –, uma espécie de metáfora sobre todas as suas crenças de No Future. Nesta entrevista falamos sobre sua carreira, influências, quadrinhos, magia, conspiração etc.
Por: Jaum


Conheci o trabalho de Law Tissot no início de 2007. Provavelmente estava pesquisando na internet sobre Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) quando “caí” no site do Setor 8 (setor8.blogspot.com), mantido por Law e outros artistas. Na época eu estava muito envolvido na pesquisa de autores de quadrinhos e de novas possibilidades com esta linguagem. Estava buscando sair do mainstream para procurar o que havia acontecido e estava acontecendo no underground. E, ao acessar o Setor 8, encontrei aquelas páginas estranhas, perturbadoras e expressionistas de Law. Era algo que me lembrava Druillet, Giger, um pouco de Jack Kirby, Moebius, mas tudo de uma forma inovadora, linda e poderosa. Suas histórias se passavam em um cenário chamado Cidade Cyber e refletiam uma sociedade decadente, cyberpunk. Eu tinha, definitivamente, que procurar mais sobre o trabalho de Law Tissot!
Descobri que Law, apesar de antes nunca ter ouvido falar nem lido nada a respeito dele, era um dos mais ativos artistas do sul do país. Nascido em 1968, em plena ditadura militar, Law havia fundado o grupo Mutação de Quadrinhos, ao lado dos artistas Marco Muller e Rodinério da Rosa, e, em 1984 (ano bastante oportuno, vide a obra de George Orwell!), lançado o primeiro fanzine, Mutação, da cidade de Rio Grande-RS. Dali em diante, Law adentrou nas mais diversas manifestações artísticas, participou de bandas de rock, gravou vídeos, produziu eventos culturais, se formou como artista plástico etc. Um artista multimídia.
No fim de 2007, quando estava começando a criar a concepção do que viria a se tornar a Peiote, consegui adquirir alguns exemplares do Areia Hostil, fanzine criado e editado por Law e pelo artista Lorde Lobo na cidade de Rio Grande. Encontrei hqs muito boas na revista, principalmente as de Law. Instantaneamente percebi que aquelas histórias que ele fazia iriam se adequar plenamente com o que eu queria para minha revista. O contato, no entanto, só se estabeleceu na metade de 2008, quando disse, por email, a ele sobre minhas idéias para a Peiote. Law gostou e aqui estamos. Esta entrevista, concedida por email em setembro de 2009, revela um pouco mais deste artista do underground brasileiro.

1. Law, depois de ultrapassar quase três décadas de produção artística - em diversas áreas como quadrinhos, música, cinema etc. - qual o balanço que você faz de sua carreira até hoje?  

Minha trajetória em todos esses anos sempre foi um tanto underground. Os fanzines, os quadrinhos, as bandas e os curtametragens traduzem sempre o mesmo nexo urbano, as tribos, a microfonia... e todos os grafismos expressionistas. Hoje posso viver exclusivamente da arte, já que estou bastante equilibrado na medida em que metade da minha vida profissional é sustentada pela meu trabalho como professor de Artes Visuais, no Colégio Alternativo (www.alternativorg.com.br), com alunos de 8 a 80 anos. Enquanto meus outros horários são preenchidos com produções culturais que atravessam as minhas paixões, como quadrinhos, videos, shows, skate, rock, hip hop...

2. Além de artista multimídia você também é produtor de vídeo, professor, pai, esposo etc. Como você consegue conciliar todas essas coisas? Seria este o motivo de sua reclusão em Rio Grande?  

Como disse, praticamente todo meu envolvimento com a arte é profissional, isso me faz ter um horário igual a de qualquer outro profissional do mercado. Claro que tenho horários mais flexiveis em razão de algumas produções. As vezes um vídeo acontece apenas na noite. Mas é tranquilo, minha mulher também é professora de Artes Visuais, além de trabalhar com fotografia. Algumas vezes trabalhamos juntos. Não vejo Rio Grande como um local de reclusão, embora isso parece fazer algum sentido em alguns aspectos sociais... Mas aqui é um território interessante, tenho muitos amigos e muita produção artística. Eu me sinto bem nesta cidade. 

3. Sobre quadrinhos, em específico, gostaria de saber o porquê de não encontrarmos materiais seus em um veículo mais "expressivo", como uma editora. Opção própria por se manter no underground ou falta de um verdadeiro mercado, que até tem surgido ao longo deste início de século XXI, mas que na década passada foi realmente fatal?

Eu me interesso muito por esse espírito dos fanzines, que me fascina desde os anos 80. Ao mesmo tempo experimentava junto outras linguagens, como os videos e as bandas de rock. Nunca dediquei um tempo significativo em torno de um portfólio mais eficiente, em termos de quadrinhos. Eu sempre publiquei meus proprios quadrinhos, sozinho ou com outros quadrinhistas, em publicações como o Areia Hostil. Essa relação que tenho cultivado com a linguagem dos quadrinhos não me aproxima - pelo menos até então - com o que seria "o mercado".

4. Já li uma boa quantidade de hqs suas e todas tiveram o ponto em comum de se passarem na Cidade Cyber. Você tem alguma história fora deste universo ou foi algo que quis direcionar desde o início de sua carreira?

Acredito que toda a minha produção de quadrinhos regular aconteceu mesmo em cima do universo da Cidade Cyber, com o cenário em si ou com seus habitantes. Mas evidente que, desde 1984, quando comecei a publicar meus primeiros fanzines, realizei muitas HQs que não tiveram nenhuma relação com a Cidade Cyber. É importante lembrar que a legitimação destes quadrinhos - como sendo ficção-cientifica cyberpunk - aconteceram a partir do numero 1 do Areia Hostil, em 2001.



5. Por ter nascido e crescido durante o período da ditadura militar em nosso país, você acredita que este fator tenha tido um impacto significativo para a criação e concepção da Cidade Cyber?

É possível. Minha adolescencia foi nos anos 80, na época da abertura, da explosão do Movimento Punk no Brasil, todos aqueles fanzines, a arte urderground. Foram muitos acontecimentos sociais, politicos e artisticos ao mesmo tempo. Naquela época lia muito os quadrinhos da Heavy Metal, e também os filmes que ditavam o comportamento da minha turma, como Blade Runner, Mad Max 2, Liquid Sky, Jubilee. Quer dizer, muitos acontecimentos e muitas possibilidades. A minha opção sempre foi por tudo aquilo que acontecia nas ruas. Desde que as atitudes estivessem misturadas com os discursos No Future...

6. Com base em tudo o que você disse que ditava o comportamento seu e de sua turma, na década de 1980, é correto dizer que naquele momento vocês se integravam aos cyberpunks, certo? Hoje você ainda se considera um cyberpunk?

Na verdade, as primeiras tribos que me integrei foram com os punks e com os góticos, em 1983...1984.... Quando surgiu a banda Sigue Sigue Sputnik, em 1986, começamos a perceber que existia uma fusão entre as ideias, quadrinhos, cinema e rock, que apontavam para um comportamento e uma moda ao mesmo tempo urbana e tecnológica. Mas não havia ainda o termo "cyberpunk" propriamente dito circulando nas ruas. Nos sentiamos mais darks naquele período.
Foi apenas a partir dos primeiros anos da década de 90, quando surgiu no Brasil a primeira edição do Neuromancer do William Gibson (pela editora Aleph) e a revista General (precurssora da editora Conrad), que as informações ficaram mais organizadas, mais claras. Então passamos a assimilar o que seríamos, logo, cyberpunks.
Eu ainda gosto de saber que me sinto um cyberpunk, com certeza.
7. Para você, qual a função de um ciberpunk em nossa sociedade?

Para alguns filósofos, antropólogos e historiadores a nossa sociedade seria cyberpunk. As tecnologias de comunicação, a violência em tempo real, a perda de identidade, os desertos do real e todo o resto da lista que está bem na nossa frente... Agora as funções de um "cyberpunk" são bastante amplas, algumas podem divertidas, outras perigosas. No meu caso a postura cyberpunk vai de encontro com o gênero de ficção-científica, os filmes, os quadrinhos, os games... o RPG inclusive. Sendo assim, o cyberpunk tornou-se um gênero de entretenimento que tem seu espaço garantido na industria cultural... Há quem diga que não existe mais função para o Movimento Cyberpunk em nossos dias, que estaríamos numa fase pós-cyber.



8.  Dizer, hoje em dia, que uma história pertence ao gênero da ficção científica é quase redundante. Você acredita que Rio Grande e o restante do mundo já são (ou estão próximos de se tornar) uma espécie de grande Cidade Cyber, como a cidade-planeta dos prazeres do álbum Delirius de Phillipe Druillet?

Hum... seria ótimo. Apesar de todas as mazelas que isso possa representar para algumas correntes mais ecológicas! A cidade sempre foi um elemento dramático nos quadrinhos de ficção-científica. Impossível não lembrar de The Long Tomorrow, do Moebius... A arquitetura ciclóptica de Druillet, além de Delirius, como em La Nuit,por exemplo... A cidade, como uma entidade viva, da maneira como o Grant Morrison apresenta na série The Invisibles me interessa mais neste momento... Meus quadrinhos atuais acontecem no Setor 8, o mundo subterrâneo da Cidade Cyber. Explorar o que acontece lá embaixo abre novas possibilidades narrativas, além de poder criar novos personagens. Mas os quadrinhos do Setor 8 ainda estão longe de ser apresentados da maneira como planejo.

9. O maior critico de um trabalho é, acredito, o próprio autor do mesmo (principalmente se levarmos em conta as mídias alternativas e undergrounds, por assim dizer). Você poderia falar um pouco sobre suas influências gerais(seja nos quadrinhos, literatura, música, cinema etc)?
 
Tenho as predileções pelos franceses Moebius e Druillet, mas leio muito Crepax, Mattotti, Bilal, Grant Morrison... Ainda escuto Alien Sex Fiend, Sisters Of Mercy, Sex Pistols e Sigue Sigue Sputnik  regularmente. Então isso ainda é sintonizado. Agora a maior parte da coleção passa mesmo pelo gênero cyberpunk, como mencionei na outra resposta, com muito material de diferentes autores e mídias.

10. É interessante perceber que, pelo que conheço de seu trabalho e de sua pessoa, tudo parece se conectar por uma lógica interna muito forte. Vou parecer o Paulo Coelho, mas seria esta conexão uma espécie de alquimia para a realização de sua "Grande Obra" que está por vir?

As vezes eu acreditei que existia mesmo uma obra, um propósito. E busquei isso insistentemente, em diferentes experiências e produções. Hoje estou em outro processo criativo e produtivo. Talvez este momento seja "a obra". Sinto que o que fazemos no Setor 8 tenha um sentido alquímico de alguma espécie. As possibilidades com a arte são amplas e seguem num ritmo interessante.



11. Já que citei o Paulo Coelho, você acredita em magia?

Sim, principalmente naquele ponto em que magia e tecnologia transformam-se numa única essência.

12. Você diz, por exemplo, quando alguns campos da física quântica começam a penetrar um "terreno" tão metafísico que praticamente vai de encontro com o que é designado como magia?

Existe farta bibliografia a nossa disposição. Gosto de ler Robert Anton Wilson para ajustar as percepções nos últimos anos. Agora, as designações a respeito do que é "magia", hoje, com todas as capacidades digitais...

13. Hoje em dia a Magia do Caos é um modelo interessante de se praticar magia, já que ela não exige, necessariamente, um mestre para o aprendizado, partindo muito mais dos princípios xamanísticos ancestrais. Com um modelo como esse, dentre muitos outros, gostaria de saber se você já praticou ou pratica algum tipo de magia (com a consciência de estar praticando tal ato, claro)?
A magia é mais simples do que suspeitava anos atrás. Mas não desvelo modelos de qualquer espécie. Além do mais, o nosso propósito aqui é falar sobre quadrinhos, certo? Esta forma de arte é carregada de muitas possibilidades simbólicas, com mensagens subliminares, códigos gráficos e narrativos. Vejamos assim, é mesmo possível ter um resultado mágico a partir de uma história em quadrinhos...


14. Nos últimos tempos tenho percebido uma forte influência do tarô em suas histórias. Isso é algo que já te acompanha a mais tempo ou apenas recentemente que se tornou parte de seus estudos?
O tarot se apresentou em minha vida num momento oportuno, uns 10 anos atrás... É interessante lembrar as questões da sincronicidade inerentes naquele momento. As coincidências que vivi, as pessoas e as conexões que foram se desvelando. Por outro lado, foi uma época - até recentemente - onde meu amigos mais próximos ficavam muito afetados por Matrix e os jogos de RPG, e todas as teorias de conspiração. Até que a confusão definitiva aconteceu em torno do livro O Pêndulo de Foucault, do Umberto Eco. Tempos estranhos que reverberam até hoje... As cartas não mentem!




15. Em sua concepção, existe uma Conspiração?

Uma?

16. (risos) Ótimo isso! Realmente muitos assuntos se tornam nebulosos quando se tratam de movimentos na história da humanidade. Além de certas conspirações que possuem evidências mais claras a respeito da veracidade como, por exemplo, o tráfico de heroína por parte da CIA, temos também teorias conspiratórias que levam até a seres de outros planetas visitando a Terra (e inclusive a dominando!) e teorias que indicam que a própria cultura pop seria uma espécie de conspiração iIluminati para manter a humanidade "dominada". Com base em todas essas teorias, como você avaliaria o seu grau de ceticismo ou dogmatismo a respeito?

Existem alguns livros bastante sedutores. Eu lembro de um em particular: Dreamland: viagens secretas ao mundo de Roswell e Area 51, de Phil Patton. Tem o clima daqueles artigos de ultratecnologia de controle e informação publicados na revista Wired. Com planos dentro de planos dentro de planos...Nos quadrinhos o melhor é Grant Morrison - Os Invisíveis - que criou uma possibilidade mais atraente ainda de aproximar a arte de uma conspiração.

17. Sei que você tem certo apego a assuntos da ufologia. Já presenciou algum evento que te indicasse a existência de alienígenas em nosso planeta?

Coleciono a revista UFO com entusiasmo, é verdade. É um assunto que me atrai desde o fim da minha infância, a partir do filme Contatos Imediatos do 3º Grau. Mas até agora nunca percebi uma pirâmide voando sobre minha cabeça!

18. É verdade que você espera por uma abdução iminente?

Bem, todos os personagens das minhas histórias em quadrinhos já foram abduzidos...

19. E o futuro? Quais são os seus planejamentos para ele?

Manter os trabalhos com histórias em quadrinhos, vídeos e produções de eventos culturais são sempre uma prioridade. De qualquer maneira existe o meu trabalho na educação que é sempre estimulante e cheio de possibilidades. Na verdade o futuro é agora, então é trabalhar todos os dias com a arte e pela arte.

20. Seria demais uma história mais longa, uma "Graphic Novel", da Cidade Cyber ou do Setor 8! Existe alguma movimentação nesse sentido, mesmo que não esteja nos planejamentos imediatos?
Isso é uma possibilidade, ainda que não seja uma prioridade. Me relaciono com os quadrinhos de uma forma muito livre, experimental, na contra-mão do mercado. Tenho trabalhado com a escritora e poeta AnyZero FRAN, que é uma das mantenedoras do coletivo Setor 8, ensaiamos algumas linhas narrativas, desenvolvemos alguns personagens. Mas não existe expectativa nenhuma, pois é assim que prefiro. Também tenho alguns personagens que sempre me perseguem nos sonhos, pedem para estar em ação... Quem sabe o que acontece a seguir?

21. Bom, Law, gostaria de agradecer demais pela ótima conversa! Caso tenha algo que você queira complementar o espaço é seu!
Agradeço a oportunidade, Jaum. Sei que esta publicação é um sonho que realizas, e estar nele me é muito importante também. E, quem quiser manter contato, é só me escrever que respondo sempre: tissot_law@yahoo.com.br.


Entrevista publicada originalmente na primeira edição da revista Peiote, em outubro de 2009.