Aposto que o motorista do ônibus se
arrependeu de ter parado naquele ponto, depois que avistou aquele bando de
baderneiros de cabelo amarelo correndo em direção a entrada da frente. Dois
deles forçavam a porta do meio do coletivo, tentando em vão entrar sem passar
na roleta. Entrei antes dos meus novos “amigos” e paguei passagem. Atrás de mim
vieram dois metaleiros e uma senhora, que pelas roupas e pela forma que perguntou
sobre o valor da passagem, não devia estar muito acostumada a andar de ônibus.
O bando entrou logo em seguida, dando boa noite ao motorista e ao trocador, mas
pulando a roleta entre gritos e empurrões. Sentado próximo ao trocador, estava
um senhor de meia idade que pela camisa e calça, parecia também trabalhar em
algum coletivo. Os manos foram para o fundo do ônibus e eu sentei ao lado do
Tony. Conversamos mais um pouco sobre política, pixação e armas. Nos demos
muito bem, apesar de ser quase impossível manter uma conversa com a gritaria e
bagunça que os outros faziam.
Os dois que antes haviam tentado entrar
pela porta do meio, agora estavam com as cabeças do lado de fora da janela,
brincando com os motoristas dos carros que passavam por nós e mexendo com
qualquer mulher que vissem pelo caminho. Estavam alegres, bêbados e eram
jovens; três combinações explosivas que, aliadas a todo aquele ódio acumulado
durante a vida, só poderiam resultar em uma coisa: depredação.
Primeiro foi a almofada de um dos bancos,
que acabou sendo lançada na mesa de um bar, próximo ao sinal fechado onde
paramos. A almofada derrubou quatro garrafas de cerveja vazias que estavam em
cima da mesa, causando revolta nos clientes do bar. Apesar da compreensível raiva, poucos tiveram coragem de reclamar, vendo o naipe dos autores de tal
façanha. Depois foi a vez da pequena lixeira, pendurada no espaço entre duas
janelas. Seu destino foi cruel; foi arrancada e arremessada no teto de outro
ônibus que passava por nós no momento. Tony e eu assistíamos a tudo entre risos
e repreensões a um ou outro mais entusiasmado que tentava puxar a alavanca de
emergência para quebrar uma das janelas.
Tony me disse que tinha 27 anos. Havia
sido preso por tráfico há algum tempo, mas depois de tirar sua cadeia, tentou
ficar de boa, longe do crime, pois tinha um filho de seis anos e queria que ele
tivesse um futuro melhor que o dele.
- Preciso dar o exemplo, né, parcêro! –
disse ele, com um brilho nos olhos.
Apesar da aparência, Tony era gente boa e
inteligente. Sabia que a melhor forma de se vingar da vida, era vencendo. E que
não adiantaria nada viver como um rei, no crime por algum tempo e depois morrer
como um Zé, pela bala de um policial burro e corrupto. A melhor forma de calar
a boca daquele bando de otários que lhe criticavam, era vencendo na vida e
sendo motivo de inveja dos que sempre duvidaram do seu potencial.
Identifiquei-me bastante com sua forma de pensar. Eu também tinha como objetivo
me vingar da vida. Não me preocupava em calar a boca de ninguém, pois não me
importa a visão que fazem de mim. Mas também não queria ficar para trás. Disse
a ele que queria ser escritor e perguntei se poderia transformá-lo em um dos
meus personagens:
- Porra, seria mó satisfação, mano! Você é
inteligente e sangue B. Vai conseguir o que quer. – Disse ele.
Foi um dos elogios mais sinceros que
recebi na vida.
O caos provocado por aqueles garotos era
fascinante. Lá do fundo eu podia ver os rostos preocupados do motorista e do cobrador,
e a cara de desgosto do senhor sentado na frente. A senhora bem vestida, também
parecia preocupada, mas tinha muito medo para olhar pra trás. Já os dois
metaleiros, sentados no meio do ônibus, fingiam que nada estava acontecendo e
também não olhavam para trás. A cadeia alimentar das ruas é clara: no topo dela
estão os manos, favelados e entusiastas do Rap. Poucos tem peito para
encará-los. Por mais assustador que seja o impacto visual de um metaleiro, eles
costumam ser tranquilos. Só liberam sua agressividade durante os shows. Quando
passam por um Mano, fazem silêncio e abaixam a cabeça.
Seguíamos pela Avenida Amazonas em alta
velocidade, quando Tony teve uma ideia:
- Aê, galera, bora surfar!
Todos concordaram, como se estivessem todo
o tempo esperando por seu aval. Ele então se levantou, apoiou na armação feita
para os passageiros se equilibrarem e deu dois pontapés na tampa do teto,
fazendo-a voar alto noite afora. Olhou para mim e me convidou para o surf.
Queria muito aceitar seu convite, mas lembrei que havia um batalhão da polícia
militar, dois quilômetros a frente, próximo ao Expominas. Escolhi esperar.
- Porra, é verdade, vamo esperar passar o
batalhão, aí a gente sobe. – Disse ele, sentando novamente ao meu lado.
A naturalidade com que Tony chutou a tampa
do teto foi tão bela, que acabou animando mais ainda os outros, que se
empurravam, competindo para ver quem chegava primeiro ao teto do coletivo. Três
deles conseguiram subir. Mas quando o quarto, por sinal, a menina que havia me
pedido cigarro antes, começou a escalar, teve de descer rapidamente para não
ser esmagada pelos outros três que desciam pela pequena abertura em desespero:
- O Batalhão! Desce, desce! – diziam eles,
despencando do teto.
Olhei pro Tony e ainda tive tempo de dizer
“Eu não disse?!”. Quando, de repente, o motorista virou bruscamente o volante,
atravessando a pista dupla em direção à entrada do batalhão. Premeditei
rapidamente que a sua intenção era entrar com o ônibus no batalhão para que os
manos não tivessem escapatória e só pude dizer:
- Fudeu!
Enquanto o ônibus passava pelos portões
abertos do batalhão, Tony correu e puxou as travas de emergência de uma das
janelas, fazendo-a despencar e se espatifar no chão. Ainda olhou para mim,
antes de pular do ônibus em movimento, seguido pelos outros. Preferi ficar na
minha, quieto e fingir que nada havia acontecido. Sentei-me próximo aos
metaleiros, enquanto as meninas pulavam a janela. Um dos manos sentou-se atrás
de mim:
- Cê é loko, irmão, pula também! Vai
ficar aqui de laranja?! Disse pra ele.
Ele arregalou os olhos e correu em direção a janela, mas do lado de fora já se aproximavam quatro policiais, armados de escopeta e pistolas, gritando para que ele ficasse quietinho lá dentro. Olhei para fora do ônibus e vi o bando já há vários metros de distância, correndo feito loucos por uma das ruas adjacentes.
Ele arregalou os olhos e correu em direção a janela, mas do lado de fora já se aproximavam quatro policiais, armados de escopeta e pistolas, gritando para que ele ficasse quietinho lá dentro. Olhei para fora do ônibus e vi o bando já há vários metros de distância, correndo feito loucos por uma das ruas adjacentes.
O motorista e o cobrador desceram do
ônibus explicando aos policiais o que havia acontecido.
- Se eu não parasse aqui, eles iriam
quebrar o ônibus todo antes de chegarmos a Betim – disse ele ao sargento.
A senhora que havia passado o tempo todo
quieta lá no banco da frente começou a reclamar cheia de indignação, agora que
os manos tinham dado no pé.
Os policiais entraram no coletivo apontando
as armas para nós quatro – os dois metaleiros, o mano e eu – e desconsiderando,
obviamente, a senhora e o senhor que estavam sentados mais a frente. Nos
mandaram levantar e colocar as mãos na armação de ferro e começaram a nos
revistar. Para nossa sorte, nesse momento o trocador gritou lá de fora “Não,
esses aí não estavam fazendo nada não!”.
Não sei o que levou o trocador a acobertar
o mano e eu, mas sou grato a ele até hoje, pois se eu fosse revistado eles
acabariam encontrando motivos para me prender. O bando, a essa hora, já devia
estar longe, aloprando em outro lugar. O fato é que provavelmente eu nunca mais
encontrarei com eles novamente, ou talvez não. Quem sabe ainda nos encontremos
por esses ônibus da vida, feito Duendes loucos dentro da noite.