28 de nov. de 2012

Surf Rodoviário (Primeira Parte) - Walisson Menezes




     Tudo começou quando gastei meus últimos centavos em uma cerveja morna e um maço de “cigarros do sucesso”. Os últimos Reais do acerto de contas do meu último emprego. Eram quatro horas da madrugada de uma sexta feira e agora eu estava duro, sem emprego algum em vista e tentando voltar pra casa, há dezoito quilômetros de distância.
     Brindo sozinho á minha pobreza, batendo a lata de cerveja na placa do ponto de ônibus onde estou, acendo um cigarro e coloco meus fones de ouvido. Este ponto na Avenida Amazonas próximo à Praça Raul Soares, de madrugada se torna palco de uma fauna interessantíssima. São gays e lésbicas entrando e saindo da boate GLS há poucos metros – uma das várias da região. Metaleiros vindos de algum show de metal - o que nunca falta na cidade conhecida como “capital do Metal”. Manos e minas esperando o noturno para Betim, Contagem ou sei lá mais onde esse povo se esconde. Tem também a galera suja e maltrapilha que sempre passa por aqui, como esse senhor que acabou de me pedir um cigarro. Tem a barba amarelada de sujeira e um saco de latinhas nas costas. Dou a ele um cigarro, mas como não tenho fogo ele vai pedir na lanchonete 24 horas, dois metros a frente. Fico observando de longe a balconista da lanchonete olhar para ele com desprezo e negar o isqueiro que estava preso a uma correntinha a centímetros dela. O senhor sai de lá com a cabeça baixa, o cigarro apagado na boca e uma triste resignação, como se não fosse a primeira vez que isso lhe acontecia. Ele me agradece e sai andando, quando digo a ele:

     - Me empresta o cigarro aí, rapidão.
     - Uai, mas você não me deu?! – pergunta ele intrigado.
     - É claro, vou te devolver, preocupa não.
     Pego o cigarro e vou até a lanchonete. Entro olhando nos olhos da balconista e digo que seus brincos são demais e combinam com seus olhos. Ela me olha com estranhamento, hesita um instante, mas deixa escapar um sorriso. Peço o isqueiro, que ela apanha ainda me olhando, acendo o cigarro e saio para devolver ao senhor que está me esperando na porta da lanchonete. A balconista ainda me olha lá de dentro meio nervosa, mas logo volta seu olhar entediado para o filme idiota que passa na Rede Globo. Um elogio falso à uma garota tão idiota quanto o filme que assiste.
     O senhor do saco de latinhas me agradece feliz da vida e estende a mão escura de sujeira, que eu pego sem problema algum, muito pelo contrário, até o cumprimento com certa admiração. São mãos sujas de trabalho. Trabalho autônomo, informal, mas de onde ele tira seu sustento para subexistir na sociedade que se esqueceu dele. Acabo acendendo outro cigarro, desta vez para mim mesmo, em homenagem a esse senhor.
          Mas como eu estava dizendo, já era por volta das quatro da manhã, então, além dessa galera esperando ônibus para voltar pra casa, havia também muitos senhores e senhoras indo trabalhar. O que tornava o lugar ainda mais interessante, pois sempre se pode notar a reação espantada de algum velho trabalhador quando os gays se beijam, os metaleiros falam do demônio ou os manos colocam Rap no volume máximo do celular e falam sobre assaltos e armas.
     Eu não me encaixava em nenhum desses grupos, era mais como um fantasma ali, uma sombra que não chamava a atenção de ninguém, a não ser pelo cigarro e pela cerveja. Os manos continuavam ouvindo Rap e conversando alto. Estavam em oito ou nove, entre eles três meninas. Uma delas se aproximou de mim:
     - Colé, doidim, me arruma um cigarro aí?
     Estava vestida de boné aba reta, camisa larga e bermuda caindo, deixando a cueca rosa aparecer. Ela foi acender o cigarro na lanchonete e voltou pra conversar comigo. Me perguntou o que eu estava ouvindo nos meus fones e eu disse a verdade: Racionais Mc’s.
     - Nóóó, cê curte Rap?! Cola ali com a gente! Tamo ouvindo Realidade Cruel! - disse ela, me puxando pelo braço.
     Resolvi acompanhá-la. Estava me sentindo estranhamente livre, talvez por ter acabado de gastar meus últimos centavos. O que seria um verdadeiro drama para a maioria das pessoas, me parecia uma boa oportunidade para reencontrar a minha essência, meu verdadeiro eu e todo aquele papo de literatura auto ajuda.
     - Aí, bandidagem, esse aqui é o... – ela me olhou sem graça – Como é seu nome mesmo?
     Menti dizendo que meu nome era Marconi. Tenho por hobby, dar nomes falsos para pessoas que acabo de conhecer. Talvez por cautela e preservação. Ou talvez seja só pra zoar com a cara dos outros mesmo, não sei.
     - Então, ele é gente boa! Tava ali na dele curtindo um Racionais, me arranjou um cigarro e tudo o mais... – disse ela.
     - E aí?! Cês conhecem essa aqui? – Perguntei a eles, para me enturmar, e coloquei pra tocar “Mano na Porta do Bar”. A reação foi unanime. Todos saudaram, gritaram e sorriram, demonstrando cada um da sua maneira, como curtiam aquela música. Eram mau encarados, alguns tinha o cabelo amarelo, falavam alto, cheios de gírias e agressividade. Figuras que lhe fariam atravessar para o outro lado da calçada, se encontrasse com algum deles numa rua deserta à noite.
     Depois disso, a conversa avançou por vários assuntos. Desde o Rap atual, passando por futebol, Funk e várias outras coisas. Mostrei para eles a canção do Racionais que falava sobre o guerrilheiro Carlos Marighella e aproveitei para falar um pouco sobre esse homem que, ideologias à parte, é um grande herói nacional. Muito mais legítimo do que os heróis que eles conheceram na escola.
     A certa altura, eu já estava tão entrosado com os caras que resolvi dar uma de herói também. Ouvi um dos manos dizendo para um casal de gays que estavam abraçados há uns cinco metros de distância:
     - Ô bichona, vai querer seu boné de volta não?
     Não foi preciso me esforçar muito para entender que ele havia roubado o boné, pouco antes de eu chegar ao ponto. Resolvi arriscar o conceito e consideração que havia acabado de conquistar, argumentando:
     - Velho, pensa comigo e me diz a real: você não se sente descriminado por ser negro, favelado e curtir Rap?
     - Porra, é craro! Muito paia essa questão. Esse povo acha que é melhor que agente... – Disse ele, depois de pensar por alguns segundos na minha pergunta.
     Nessa hora, minha tensão aumentou, pois todos os outros pararam de conversar e ficaram me olhando para ouvir o que eu tinha a dizer. Qualquer passo em falso poderia significar xingamentos, socos, pontapés ou meu celular sendo roubado, para que eu deixasse de ser metido a besta.
     Segurei a onda e prossegui:
     - Então, parcêro! Eu te garanto que aqueles dois ali são discriminados pra caralho também. Assim como você não escolheu ser negro e favelado, eles também não escolheram gostar de pessoas do mesmo sexo. Não que isso seja um defeito, ou seja errado, da mesma forma que ser negro e favelado de modo algum é defeito. É apenas uma característica, que esse bando de babaca por aí despreza! O Mano Brown sempre meteu o pau no preconceito, na discriminação e nessa sociedade ignorante que julga pelas aparências. Roubando os caras e zoando eles assim, você está sendo igual a tudo o que há de mais escroto nessa sociedade.
     Quando terminei de falar, houve um silêncio incômodo e preocupante. Mas segundos depois, o mano, que por sinal era chamado de Tony e era o mais velho entre eles, abaixou a guarda e disse:
     - Porra, pior que cê tá certo. Toma, devolve o boné pra ele lá!
     O papo continuou entre eles. Apanhei o boné e devolvi para os dois, que me agradeceram várias vezes. Voltei pra perto da galera, mas logo saímos correndo para pegar o ônibus que estava chegando: Jardim Teresópolis, considerada a maior favela de Minas Gerais. Não moro lá, mas resolvi acompanhá-los, pois poderia descer num ponto no meio do caminho e seguir a pé até minha casa. E foi a partir daí que a noite ficou interessante de verdade.





Continua...