2 de mai. de 2012

Crônicas de Fábrica Vol. 3



     Eu já trabalhei em vários tipos de emprego, desde os quatorze anos de idade. Uma variedade maior do que muitas pessoas trabalharam durante toda a vida. Já fui Mecânico de Refrigeração, Mecânico de Automóveis, Cortador de Tecidos em uma fábrica de fardamentos militares, fabriquei sorvete, fui Balconista de bar, Servente de Pedreiro, Operador de Processo industrial, Garçom e até Professor de literatura, português e inglês. Todos estes empregos foram importantíssimos para mim. Apesar de não ser aquele tipo de cara que divinifica o trabalho e dá a ele toda a importância do mundo, uma vez que começo a trabalhar, tento tirar dele algo mais válido do que apenas dinheiro: aprendizado. E em todos estes empregos, tenho certeza de que aprendi coisas que nenhum graduado, mestre ou doutor aprendeu.
     Lembro-me como se fosse ontem, a manhã de céu limpo e ensolarado em que a Fiat Automóveis assinou minha carteira. Durante minha vida inteira, tive grande proximidade com a empresa. Meus tios que trabalhavam lá, sempre falaram coisas incríveis sobre a fábrica, contavam histórias e me levavam nas famosas festas da Fiat. Apesar de nunca ter sonhado trabalhar lá, na época me pareceu uma boa oportunidade para levantar um dinheiro e depois voltar a estudar.
     Naquela manhã, assinaram a minha carteira de trabalho e as de mais uns duzentos homens, todos mais velhos do que eu. Assistimos a uma maratona de cinco dias de palestras sobre o funcionamento da fábrica e várias outras coisas. Palestras que serviram para a lavagem cerebral, sobre a qual falarei melhor daqui a pouco. Depois, era enfim chegada a hora do primeiro dia na linha de produção. O acesso era restrito para os funcionários, logicamente, o que deixou-nos cheios de ansiedade e curiosidade para conhecer aqueles galpões gigantescos, com mais de dois mil funcionários cada um. O galpão da montagem, onde eu iria trabalhar, era maior do que o meu bairro inteiro e pulsava de barulho, movimento e vida. Milhares de histórias, milhares de trajetórias diferentes se cruzavam ali dentro. Trabalharíamos de 22 ás 6 horas da manhã, mas sairíamos de casa ás 21 e só chegaríamos às 7 do dia seguinte, ou seja, viveríamos grande parte de nossos dias naqueles galpões. Logo nos primeiros minutos lá dentro, já sentimos toda a pressão do ambiente. Éramos mais de duzentos novos funcionários guiados por um sujeito que já trabalhava lá há anos, ele ficou encarregado de mostrar-nos o galpão. Logo que nos avistaram entrando, os peões que trabalhavam como loucos correndo na linha de produção, começaram a gritar e a mexer com agente, os novatos;
     - Olha só, carne nova no pedaço!
     - Hahaha agora vocês ficam rindo, neh?! Daqui a pouco tão chorando com agente aqui na linha...

     Eu me sentia como se estivesse entrando em um presídio, com os presos fazendo algazarra e batendo nas grades. Da mesma forma, os peões gritavam feito macacos em guerra. Batiam as ferramentas, gargalhavam, zoavam agente de tudo que se pode imaginar. Já outros eram menos agressivos:
     - Aí galera, não liga pra esse pessoal não, eles são assim mesmo. Boa sorte aí pra vocês! – diziam eles, sem perder a concentração no trabalho.
          Eu tinha apenas dezenove anos, mas não era ingênuo como os garotos desta idade costumam ser. Já conhecia os podres do sistema, suas armadilhas e suas engrenagens. Sabia que se não fosse cuidadoso e não preservasse minha essência, ficaria aprisionado naquele emprego por toda a minha vida, como meus tios ficaram. O salário era atrativo, o status social também era legal e uma vez lá dentro, você era obrigado a viver por aquilo. O leitor pode pensar “Que status social pode ter um simples peão de fábrica?” eu explico: a partir do momento em que comecei a trabalhar lá, deixei de ser a incorrigível ovelha negra da família, para me tornar o mais novo filho prodígio. Duas vezes deixei de ser revistado pela polícia por ter apresentado meu crachá da Fiat. Se para você isso continua não significando nada, o problema é seu, para mim significou. Inúmeras também foram as ocasiões em que fui cumprimentado e parabenizado por trabalhar lá. Pessoas que nunca notaram minha existência começaram a se aproximar de mim, na esperança de que eu pudesse dar a elas uma carta de indicação.
     Conversando com os outros peões, percebi que todos eles passaram pelo mesmo processo que eu estava passando. Infelizmente, poucos tinham a consciência que eu tinha, de que tudo aquilo era uma grande ilusão. A maioria se orgulhava profundamente daquele suposto status social. Alguns chegavam até ao absurdo de saírem vestidos com o uniforme da empresa, sem estar indo trabalhar, para que todos vissem que eles trabalhavam lá. O mais trágico dessa situação não é a cabeça fraca desse tipo de pessoa que se presta a este tipo de papel, mas sim, perceber que isso realmente funcionava. As pessoas realmente lhe respeitavam, sabendo que você trabalhava na Fiat.
     A grande culpada de toda esta situação, claro, é a própria Fiat. Assim que tivemos nossas carteiras assinadas, passamos uma semana inteira, de oito às dezesseis horas, assistindo palestras sobre como é maravilhoso trabalhar lá. Palestras e vídeos explicando cada detalhe da grandiosidade da fábrica. Explicações sobre nossos inúmeros benefícios - dos quais mais da metade acabamos nunca usufruindo – testemunhos de funcionários falando sobre como era a vida antes e como era a vida agora, depois de começar a trabalhar na empresa. Só não explicaram, como era desumano o ritmo de trabalho na linha de produção, como eram desgraçados o líderes e encarregados que nos gerenciariam e que o salário da Fiat era o mais baixo de todas as outras fábricas de automóveis do país, mesmo sendo a líder em vendas.
     De qualquer forma, quando assinaram minha carteira, já estava ciente de toda essa situação. Mas precisava de dinheiro, precisava de novas experiências e precisava viver. Lá, naquela linha de produção enfurecida pela ganância capitalista, encontrei tudo isto e muito mais. Apesar de voltar todo dia pra casa quase sem conseguir mexer os braços, de tanta dor, não me arrependo.
     Vi pais de família, dos trinta aos quarenta anos narrarem as mesmas situações que acabei de narrar. Foram eles, inclusive, que confirmaram meu medo de ficar preso naquela fábrica pelo resto da vida. Eram homens que também já haviam trabalhado em incontáveis empregos, e depois que entraram na Fiat se conformaram e passaram a considerar aquilo o melhor que poderiam conseguir. Não os condeno por isto, de forma alguma. A maioria deles não tinha nem o ensino fundamental completo, mas eram de uma sabedoria muito maior do que a maioria dos professores que tive. Depois de tantos anos trabalhando na empresa, eles entendiam como as coisas funcionavam, mas naquela altura já estavam velhos demais para o mercado de trabalho, e seria muito difícil conseguir outro emprego.
     Felizmente, eu ainda era novo o suficiente para escolher. Felizmente eu consegui preservar minha essência e saí daquele emprego depois de dois anos de trabalho duro. Voltei a estudar e estou muito mais satisfeito comigo mesmo, apesar de ter os bolsos vazios. É muito difícil contar tudo o que aprendi naquele lugar, pois a cada novo parafuso apertado eu aprendia algo. Mas se tem uma coisa que eu poderia destacar, é aquela velha ideia clichê que se encontra em todo livro de auto ajuda. Aquele velho ensinamento que, hoje em dia, nestes tempos pós modernos, se tornou batido e lugar comum:
     Não tenha medo de arriscar, siga seu coração!




(Walisson Menezes)