Aquele safado, sem vergonha, vagabundo de
merda, tem a cara de pau de me ligar a essa hora da noite só pra fazer hora com
a minha cara. Sou uma burra mesmo, por ter atendido esse telefone. Quem ele
pensa que é pra ligar pra casa de mulher direita uma hora dessas e ficar me
provocando, me confundindo, me atazanando? Há muito tempo que cortei esses
direitos. Não tenho tempo a perder com vagabundo, não! Sou mulher de família,
trabalhadora. Quem ele pensa que é? Quem ele pensa que eu sou?
Eu devia ter adivinhado desde a primeira
vez que o vi. Naquele boteco sujo, fedendo a copo de cachaça mal lavado,
sentado no balcão, conversando com o velho dono do bar. Aquele jeito
displicente de quem não está nem aí pra nada, de quem não se preocupa com nada,
de quem não tem nada. Falando alto, gesticulando, sorrindo, contando casos. Como
eu pude ser tola o suficiente para lhe dar atenção quando ele veio de conversa
mole pra cima de mim? Eu, que só havia entrado naquele chiqueiro para perguntar
qual ônibus eu poderia pegar pra descer no centro. Eu, que estava feliz da
vida, realizada com meu primeiro dia no novo emprego. Estava praticamente
perdida, naquela região desconhecida. O dono do bar mal tirou os olhos da
flanela encardida, com a qual limpava o balcão, para me dizer que não sabia
qual ônibus eu poderia pegar. Já ele, safado, de pronto se ofereceu para me ajudar:
- Uai, moça, eu já estava de saída e
também estou indo pro centro. Se a senhorita não se incomodar, posso
acompanha-la até lá.
É claro que eu disse que não precisava.
Mas ele insistiu e eu não poderia impedi-lo de pegar o mesmo ônibus que eu,
afinal, vivemos em um país livre. Assim, acabamos indo juntos até o centro. Ele
de conversa mole, falando que era engenheiro e que seu carro estava na oficina,
por isso estava pegando ônibus. Eu, sorrindo para tudo o que ele dizia,
fingindo atenção, educada. O ônibus lotado, a cidade iluminada, gente por toda
parte. Eu, radiante pelo meu novo emprego, nem me incomodava com aquilo tudo, estava
com a guarda baixa. As pessoas a nossa volta também riam das palhaçadas que ele
contava. Na verdade, tenho que admitir que ele era simpático. Sabia conversar,
era engraçado, estava bem vestido, cheiroso, pele morena, olhos verdes... Filho
da mãe! Como pude ser tão boba em acreditar naquele monte de baboseiras que ele
disse?! Eu devia ter percebido desde o inicio que ele não era engenheiro
porcaria nenhuma. O que diabos um engenheiro estaria fazendo naquele boteco
imundo? Na verdade ele não passava de um pedreiro, pinguço, galinha. E o carro
dele estava na oficina porque era um Opala velho, fudido, caindo aos pedaços. O
mesmo Opala que quebrou várias vezes com a gente no meio da madrugada.
Agora, depois de tanto tempo desde aquela
tarde em que o conheci. Depois de tanto tempo juntos, dia após dia descobrindo
uma nova mentira contada por ele. Depois de ter dado um ponto final nessa
história. Justo agora, que eu já estava conseguindo esquecer aquele filho da
mãe, ele vem me ligar uma hora dessas pra me atazanar. Dizendo que ainda me
ama, que pensa em mim todo o tempo e que está me ligando do bar porque só
consegue me esquecer bebendo. Até parece! Deve estar é cheio de vagabundas
embaixo dos braços, caindo de bêbado e me ligou porque não consegue ir pra casa
sozinho. Por que aquele inútil tinha que escolher logo um boteco tão perto da
minha casa? Só pra me tentar mais ainda a ir lá e dar uns belos tapas naquela cara
de pau. É isso que da vontade de fazer, encher ele de porrada, rodar a baiana,
gritar pra todo mundo ouvir que ele não presta.
Pois
é isso que eu vou fazer: pegar minha bolsa, descer correndo a ladeira, chegar
no bar gritando e espantando aquele monte de vagabunda que deve estar debaixo
das asas dele. Rasgar aquela única camisa cara que ele deve estar usando. Vou
unhar a cara dele e falar isso tudo que está entalado aqui na garganta.
Vou pega-lo pelo braço e levar pra minha
casa. Vou cuidar dos ferimentos dele, joga-lo debaixo da água fria, passar um
café bem forte. E depois, vou dormir com ele.
Burra!
(Walisson
Menezes)