10 de fev. de 2012

O topo do mundo - Wálisson Menezes



Mentira la mentira
Mentira la verdad
Todo es mentira en este mundo
Todo es mentira la verdad
Todo es mentira yo me digo
Todo es mentira ¿Por qué será?”

(Manu Chao – “Mentira”)
     - Sinceridade não existe, parcêro! – Disse ele, com a voz presa, pelo trago no baseado que já ia pela metade.
     - Quê? Como assim? – Perguntou o outro, sem dar muita atenção.
     A pedreira era o “ponto turístico” da região. Não passava de uma velha pedreira abandonada pela ganância capitalista, mas proporcionava uma vista realmente privilegiada. Lá de cima era possível ver os barracos da pequena favela onde moravam se estendendo morro abaixo e também todos os bairros num raio de quinze quilômetros. Eles estavam no topo do mundo, o mundo deles. A velha pedreira servia de trampolim para os evangélicos fazerem suas orações e se sentirem mais próximos a Deus. Servia também, para a molecada que curtia fumar um bagulho, beréu, pedra ou qualquer outra coisa que os fizessem distrair-se um pouco da realidade.

     - Tipo assim... – disse ele, sentando-se ao seu lado, e continuou - sinceridade é muito bonito na TV, muito bonito nos filmes e nos livros de auto-ajuda, mas não é real! Não existe! É impossível alguém ser sincero!

     O outro olhou-o intrigado e perguntou:
     - Até aí tudo bem, já entendi. Mas porque você acha que não existe? Quê que pega?

     - Em primeiro lugar, é impossível você ser sincero com alguém, uma vez que as palavras são só palavras, e são incapazes de exprimir o que você realmente pensa. Quando alguém te encontra na rua, por exemplo, e lhe pergunta: “Como você está?”. A pessoa não quer realmente saber como você está,  apenas pergunta isso como convenção social. – explicou.

     - Odeio quando você começa a usar essas palavras difíceis. – reclamou o outro. – O que é “convenção social” ?

     Ele sorriu, dando mais um trago no baseado e tentou explicar:

     - Convenção social, é algo que você aprende desde pequeno a fazer, para que os outros não te achem mal educado, estranho, chato...esse tipo de coisa. Por exemplo, quando algum parente distante seu morre e você vai no velório dele. Por mais que você não tivesse qualquer sentimento por ele, você se força a parecer triste, e às vezes até chora, só para que os outros não pensem que você é um desalmado, insensível, ou coisa pior! Isso é convenção social.

     - Ah, entendi! – exclamou o outro. – Tipo, daquela vez que eu terminei com aquela mina da rua de baixo, que eu namorei mó tempão, lembra?! Falei pra ela que não era culpa dela, que ela era maravilhosa. Que o problema todo era eu, que eu não merecia todo o amor que ela tinha por mim...(começou a rir) Nada a ver! Eu é que tava de saco cheio dela pegando no meu pé! Tava enjoado dessa porra! – disse o outro, caindo na gargalhada. O bagulho já estava fazendo efeito.

     - Isso! Exatamente disso que to falando! – Disse ele, rindo também – Mas a questão é que nesse mundo, tudo é mentira! Você não vê essas propagandas na TV?! Propaganda de pisante, por exemplo. Eles mostram a galera correndo, pulando, escalando altos morro. Mas quando você compra, a porra do tênis não dura nada! Logo logo já ta  abrindo todo, entrando água. Não agüenta nem um corre dos hômi.

     - É! Bem assim mesmo! – Concordou o outro, rindo novamente.

     Ele jogou fora a ponta do baseado e continuou:
     - Nem o amor é sincero, amigo! Quando uma mina diz que te ama, ela não está sendo realmente sincera. É coisa de momento, tá ligado?! Tudo isso passa, algum dia.

     - “Amor, só de mãe”, parcêro... – disse o outro, sério, citando “Detentos do Rap”.

     - Pode crer! Uma vez, quando eu ainda estudava, tava dando uma olhada no livro de português e acabei lendo um poema dum mano francês das antiga que dizia:

     “As carícias não passam de inquietos transportes
     Infrutíferas tentativas do pobre amor que busca
     A impossível união das almas através dos corpos...”

     O outro olhou para ele em silêncio durante alguns segundos e disse, finalmente:
     - Francês é aquele povo que não curte tomar banho, neh?! – e riu até engasgar.

     - Tipo isso... - disse ele, desistindo de explicar mais alguma coisa e rindo também.

     O céu estava claro de estrelas. No alto da pedreira era possível vê-las e senti-las bem mais próximas, sem a claridade dos postes lá de baixo. O Racionais Mc’s, a trilha sonora clássica, tocava no celular. Saía do pequeno alto falante e ecoava por toda a pedreira, sendo levada pelo vento. Entrava pelos seus ouvidos e passava por todo o corpo, ditando o ritmo de suas respirações.Quem disse que a poesia não encanta mais a juventude?! Ela estava ali naquele momento e em todos os outros do cotidiano deles. Caetano Veloso, Chico Buarque ou o Rock dos anos 80, tudo isso não significava nada para eles, e com razão. Naquele momento contemplativo na pedreira, eles não eram só mais um número, não eram só parte das estatísticas do IBGE. Naquele momento, eles se esqueciam, mesmo que apenas por alguns segundos, de toda a miséria da qual faziam parte. Ali no topo do mundo eles estavam distantes dos julgamentos e preconceitos. Ali em cima eles estavam a salvo da polícia também, pelo menos por enquanto.
     Conversaram por mais algum tempo e decidiram descer, já era madrugada e na manhã seguinte, o movimento começaria cedo. Ele se levantou, pegou seu revólver e colocou na cintura. O outro, também se levantando, bateu o pó da bermuda, ajeitou o boné e foram descendo o morro, de volta à realidade.




(Walisson Menezes)