1 de fev. de 2012

Crônicas de Fábrica Vol. 1


       Deitei sob minha árvore favorita, tirei as botas, coloquei minhas meias furadas no sol e fechei os olhos. A maldição de trabalhar naquele lugar é que mesmo descansando, depois do almoço, você sonha com aquilo. Dessa vez não foi diferente.
       No sonho, o suor me cegava, incomodava, estressava. Corria de um lado para o outro na linha de produção, parafusando, desparafusando, encaixando peças, parafusando novamente...
Olhava para os lados e todos estavam na mesma situação que eu. A linha rodava a todo vapor, impiedosa. Nessas horas você não consegue pensar em nada diferente de parafusar, desparafusar, encaixar e parafusar novamente. O barulho era ensurdecedor, como sempre. Trombei no meu melhor amigo naquele lugar, ele me mandou tomar no cu. Olhei para a minha máquina parafusadeira, olhei para os carros incompletos sendo levados pela linha de produção, olhei em volta. Caos. Correria. Sentimento de inferioridade em meio a tanto aço, tanta tecnologia, tantos homens maiores, mais fortes e mais velhos que eu, sofrendo da mesma maneira. Olhei para a sala do líder. Lá estava ele sentado, absorvido pelo computador, tranqüilo, com seu ar condicionado, sua roupa limpa e fresca.
       Eu estava mesmo sonhando? Ou meu horário de almoço já tinha terminado e eu estava de volta à linha sem me dar conta? Acredite, essa dúvida me ocorria com mais freqüência do que se pode imaginar.

       Mas o que mais ecoava em minha mente era: O que eu estava fazendo ali?
Com aquele sol maravilhoso e dourado brilhando lá fora, que eu só consegui ver olhando para as telhas transparentes do teto do galpão. Me matando a cada segundo, atingindo o máximo do meu esforço físico a cada minuto. Minha vida sendo levada. Minha juventude sendo comprada por atacado. Quanto eu havia perdido? Quanta gente eu havia deixado de conhecer, preso naquele galpão por 12 horas por dia? O que eu estava fazendo ali?
       Olhando através da telha transparente e imaginando o sol, senti meu sangue, que já estava quente, ferver. Pensei nas milhares de vidas perdidas dentro das milhares de fábricas pelo mundo, lembrei do discurso de Mario Sávio em 1964 e então, não pensei mais: Empunhei a parafusadeira, subi no capô do carro mais próximo e bati com toda a força que ainda me restava no pára-brisa, que rachou de fora a fora. Desferi o segundo golpe, fragmentando ainda mais o vidro. No terceiro, cortei a mão mas consegui abrir um pequeno buraco. No mesmo instante a linha parou, os homens também pararam, olhando para mim. Alguns horrorizados, outros curiosos, outros sorrindo. Alguns lá no fundo iniciaram uma tímida salva de palmas. Pela primeira vez no dia, a linha estava quieta.
       Acordei com o celular despertando, enxergando a copa da árvore. Era hora de voltar para a linha de produção. Ainda pensei enquanto calçava as botas: Eu havia realmente acordado? Ou era apenas a continuação do pesadelo?



(Wálisson Menezes)