6 de fev. de 2012

Contra a Legalização - Hakim Bey


CONTRA A “LEGALIZAÇÃO”
Como escritor, eu fico angustiado e deprimido pela suspeita de que a “mídia divergente” se tornou, em termos, uma contradição – uma impossibilidade. Não por causa de algum triunfo da censura, no entanto, mas o oposto. Não há censura real em nossa sociedade, como Chomsky ressalta. A supressão da divergência é atingida, paradoxalmente, permitindo à mídia absorver (“ou cooptar”) toda divergência como Imagem.
Uma vez processada como mercadoria, toda rebelião é reduzida à imagem de rebelião, primeiro como espetáculo, e depois como simulação (veja Debord, Baudrillard, etc). Quanto mais poderosa a dissidência como arte (ou “discurso”), mais impotente se tornará como mercadoria. No mundo de Capital Global, onde todos os meios de comunicação funcionam coletivamente como um espelho perfeito do Capital, podemos reconhecer uma imagem global ou um imaginário universal, mediada universalmente, sem qualquer periferia. Toda Imagem foi submetida a um cerco e, como resultado, parece que toda arte torna-se impotente na esfera do social. Na verdade, já não podemos sequer supor a existência de qualquer “esfera do social”. Todas as relações humanas podem ser – e são – expressas como relações de mercado.
Nesta situação, ao que parece, “reforma” também se tornou uma impossibilidade, uma vez que toda melhora parcial da sociedade será transformada (pelo mesmo paradoxo que determina a Imagem global) numa forma de sustento e desenvolvimento do poder do mercado. Por exemplo, “reforma” e “democracia” já se tornaram um código para a forçosa imposição de relações mercantis sobre os antigos Segundo e Terceiro Mundos. “Liberdade” significa liberdade de corporações e não de sociedades humanas.
Desse ponto de vista, tenho sérias ressalvas sobre os programas de reforma dos Guerreiros anti-drogas e Legalizacionistas. Indo mais longe, eu diria que sou “contra a legalização”.

Não é preciso dizer que eu considero a guerra às drogas uma abominação, e que eu exigiria anistia incondicional imediata para todos os “prisioneiros de consciência”, supondo que eu tivesse algum poder para fazer exigências! Mas em um mundo onde todas as reformas podem ser instantaneamente transformadas em novos meios de controle, de acordo com o “paradoxo” esboçado nos parágrafos anteriores, não faz sentido continuar exigindo a legalização simplesmente porque parece racional e humano.
Por exemplo, consideremos o que poderia resultar da legalização da “maconha medicinal” – clara vontade do povo em pelo menos seis estados. A erva cairia instantaneamente sob os drásticos novos regulamentos de “Cima” (a AMA, os tribunais, seguradoras etc). A Monsanto provavelmente adquiriria as patentes de DNA e “propriedade intelectual” da estrutura genética da planta. Provavelmente leis seriam apertadas contra a maconha ilegal de “uso recreativo”. Fumantes seriam definidos (por lei) como “doentes”. Como mercado, a Cannabis logo seria desnaturada, como outros psicotrópicos legais, tais como café, chocolate ou tabaco.
Terence McKenna uma vez destacou que praticamente todas as pesquisas úteis sobre psicotrópicos são realizadas de forma ilegal e, muitas vezes, financiadas clandestinamente. Legalização possibilitaria um controle muito mais acirrado de cima sobre toda a pesquisa de drogas. As valiosas contribuições marginais enteogenicas provavelmente diminuiriam ou cessariam completamente. Terence sugeriu pararmos de desperdiçar tempo e energia pedindo permissão às autoridades para fazer o que estamos fazendo e simplesmente seguir em frente.
Sim, a guerra às drogas é má e irracional. Não esqueçamos, contudo, que como atividade econômica, a guerra faz bastante sentido. Não vou nem mencionar a crescente “indústria das correções”, os orçamentos inchados da polícia e da inteligência ou os interesses de cartéis farmacêuticos. Economistas estimam que cerca de dez por cento do capital circulante é “dinheiro cinza” derivado de atividades ilegais (em grande parte de drogas e venda de armas). Essa zona cinzenta é na verdade uma espécie de fronteira flutuante para o Capital Global em si, uma pequena onda que precede a grande onda e lhe oferece “senso de direção” (por exemplo, dinheiro cinza ou capital “costeiro” é sempre o primeiro a migrar dos mercados deprimidos para os mercados prósperos). “A guerra é a saúde do Estado”, como Randolph Bourne disse uma vez, mas a guerra já não é tão rentável como nos velhos tempos de pilhagem, tributos e escravidão. Cada vez mais a guerra econômica toma o seu lugar, e a guerra às drogas é quase uma forma “pura” de guerra econômica. E já que o Estado Neoliberal concedeu tanto poder para corporações e “mercados” desde 1989, pode-se dizer justamente que a Guerra às Drogas constitui a “saúde” do próprio Capital.
A partir dessa perspectiva, a reforma e a legalização seriam claramente condenadas ao fracasso por profundas razões de “infraestrutura” e, portanto, todo movimento para a reforma constituiria um esforço desperdiçado, uma tragédia do idealismo mal dirigido. O Capital Global não pode ser “reformado” porque qualquer reforma é deformada quando a forma em si é distorcida em sua própria essência. Movimentos para a reforma são autorizados para uma imagem de liberdade de expressão e a divergência permitida pode ser mantida, mas a reforma em si nunca é permitida Os anarquistas e marxistas estavam certos ao afirmar que a estrutura em si deve ser mudada, não apenas suas características secundárias. Infelizmente, os “movimentos sociais” em si parecem ter falhado e, agora, até mesmo suas estruturas primordiais devem ser, agora, “reinventadas” quase do zero. A guerra contra as drogas vai continuar. Talvez devêssemos considerar um modo de agir como guerreiros, em vez de reformistas. Nietzsche diz em algum lugar que ele não tem interesse em derrubar a estupidez da lei, uma vez que tal reforma não deixaria nada para o “espírito livre” realizar – nada a “superar”. Eu não iria tão longe a ponto de recomendar uma posição existencialista tão “imoral” e rígida. Mas eu acho que nos faria bem uma dose de determinação.
Além (ou à parte) de considerações de ordem econômica, a proibição de (alguns) psicotrópicos também pode ser considerada a partir de uma perspectiva “xamânica”. O Capital Global e a Imagem universal parecem ser capazes de absorver quase toda “periferia” e transformá-la em área de mercantilização e controle. Mas, de alguma forma, por alguma estranha razão, o Capital parece incapaz ou relutante em absorver a dimensão enteogenica. Ele persiste em guerrear ao que altera a mente ou substâncias de transformação, ao invés de tentar “cooptar” e hegemonizar seu poder.
Em outras palavras, parece que algum tipo de poder autêntico está em questão aqui. O Capital Global reage a este poder com a mesma estratégia básica que a Inquisição, tentando suprimi-lo de fora, ao invés de controla-lo por dentro (o “Projeto MKULTRA” foi a tentativa secreta do governo a penetrar no interior oculto do psicotropismo – e parece ter falhado miseravelmente). Em um mundo que aboliu a Periferia pelo triunfo da Imagem, parece que um “exterior”, no entanto, persiste. O poder pode lidar com esse exterior apenas como uma forma do inconsciente, ou seja, pela supressão em vez da realização. Mas isso deixa aberta a possibilidade de aqueles que conseguem atingir a “consciência direta” desse poder poderem efetivamente ser capazes de brandi-lo e implementá-lo. Se o “neoxamanismo enteogenico” (ou como você quiser nomeá-lo) não pode ser traído e absorvido pela estrutura de poder da Imagem, então podemos supor que ele representa um Oposto genuíno, uma alternativa viável a “um mundo” do Capital triunfante. Ele é (ou poderia ser) a nossa fonte de poder.
A “Magia do Estado” (como M. Taussig denomina), que também é a magia do Capital em si, consiste em controle social através da manipulação de símbolos. Isso é alcançado através de mediação, incluindo o meio final, o dinheiro como texto hieroglífico, o dinheiro como Imaginação pura, como “ficção social” ou alucinação em massa. Essa ilusão real tem tomado o lugar da religião e da ideologia como fonte ilusória de poder social. Esse poder, portanto, possui (ou é possuído por) um objetivo secreto, que todas as relações humanas sejam definidas de acordo com essa mediação hieroglífica, esta “Mágica”. Mas o neoxamanismo propõe com toda a seriedade que uma outra magia pode existir, um modo eficaz de consciência que não pode ser enfeitiçada pelo signo da mercadoria. Assim sendo, facilitaria a explicação de porque a Imagem parece não poder ou não querer lidar “racionalmente” com a “questão das drogas”. De fato, uma análise mágica do poder pode surgir do fato mencionado dessa incompatibilidade radical entre Imaginário Global e consciência xamânica.
Neste caso, de que consistiria nosso poder real em termos empíricos reais? Estou longe de propor que “ganhar” a Guerra às Drogas de alguma forma constituiria A Revolução – ou mesmo que o “poder xamânico” poderia contestar a magia do Estado de qualquer maneira estratégica. Claramente, no entanto, a própria existência da enteogenia como uma diferença real – em um mundo onde a verdadeira diferença é negada – marca a validade histórica de um Oposto, uma verdadeira Periferia. No caso (improvável) da legalização, esta Periferia seria violada, penetrada, colonizada, traída e se transformaria em pura simulação. Uma fonte principal de iniciação, ainda acessível em um mundo aparentemente desprovido de mistério e de desejo, seria dissolvida em uma representação vazia, um pseudo rito de passagem dentro cerco atemporal e ilimitado da Imagem. Em suma, teríamos sacrificado o nosso poder potencial por uma cópia mal feita da reforma da legalização, e não ganharíamos nada além de um simulacro de tolerância às custas do triunfo do Controle.
Mais uma vez: eu não tenho nenhuma ideia de qual deverá ser nossa estratégia. Acredito, porém, que chegou a hora de admitir que uma tática de mera contingência não pode mais nos sustentar. “Divergência consentida” tornou-se uma categoria vazia e a reforma uma mera máscara para a recuperação. Quanto mais lutarmos em “seus” termos, mais perderemos. O movimento de legalização das drogas nunca ganhou uma única batalha. Não na América, de qualquer maneira – e a América é a grande “superpotência” do Capital Global. Nos orgulhamos de nosso estado fora da lei como estranhos e marginais, como guerrilheiros ontológicos, por que então nós continuamente imploramos por autenticidade e validação (seja como “recompensa” ou “punição”) das autoridades? Que bem faria se nos fosse concedido esse status, essa “legalidade”?
O movimento de Reforma manteve verdadeira racionalidade e tem defendido reais valores humanos. Honra onde a honra é devida. Dado o grande fracasso do movimento, no entanto, não seria conveniente dizer algumas palavras a favor do irracional, da vastidão irredutível do xamanismo, e até mesmo uma singela palavra para os valores do guerreiro? “Paz não, mas uma espada!”.

Obs.: mais tarde as notas serão atualizadas aqui!