5 de abr. de 2012

Vênus do Pântano versus Anel Peniano Nazista: algumas reflexões sobre pornografia - Alan Moore

Vênus do Pântano versus Anel Peniano Nazista

algumas reflexões sobre pornografia

Alan Moore
Tradução: Isabella Ferraro


Cena de Lost Girls (Editora Devir) - Alan Moore e Melinda Gebbie




Falando de forma particular ou Paleo-antropológica, é justo dizer que nós, humanos, iniciamos a vida manipulando a nós mesmos. Nossa tecnologia superior de exame minucioso revela que a maioria de nós começa uma vida de vício solitário ainda no útero, enquanto que, se percorrermos nossa cultura de volta aos primeiros artefatos que revelavam que possuíamos uma cultura, nos deparamos com um pião de seios e nádegas, cabeça dissimulada, devotamente esculpida em pedra calcárea, escavada de um assentamento Aurinaciano descoberto em uma aldeia conhecida como Willendorf, ao nordeste da Áustria.

O poderoso Robert Crumb, de seus incrivelmente prolíficos dias de Weirdo, concebeu Bob das Cavernas como criador da primeira Vênus de Willendorf, um exilado neurastênico bastante semelhante ao próprio Crumb, sempre com tesão, acocorado em sua caverna e se masturbando com a mulher-fetiche bunduda que ele acabara de fazer: Homo erectus.

O argumento de Crumb é, com toda probabilidade, que enquanto tal mulher funcionava muito bem como ícone mágico para induzir à fertilidade (e enquanto resistia como exemplo da gênese pré-histórica da arte), aos olhos modernos a Vênus de Willendorf é um objeto de excitação para seu criador - um material de punheta da idade da pedra, pornografia primordial. Ele também pode estar dizendo que, ao percorrermos nossa cultura até suas origens genuínas, descobrimos que seu instigador é um maníaco devasso e onanista compulsivo, muito parecido com o próprio Crumb, ou comigo, ou com qualquer um de nós, se formos inteiramente honestos.



Mesmo de forma individual, ainda dentro do ventre, ou como espécie que recentemente caiu do topo das árvores que compartilhávamos com o chimpanzé Bonobos (nosso parente não tão distante), os humanos desde cedo descobrem que o auto-estímulo sexual é uma fonte de grande satisfação, praticamente a única em nossa experiência como mamíferos; facilmente executável e distinto de quase todas as demais atividades primitivas, pode ser concluído sem risco de ser desmembrado ou devorado. Também pode ser obtido completamente livre da culpa que bem pode ser um fator nas subsequentes tentativas que a sociedade promove para ajustar a imaginação sexual, que é uma questão à qual retornaremos depois.    

Isso não quer dizer, é claro, que a sociedade inteira é um resultado imediato de Onanismo crônico, apesar de eu conseguir ver como alguém pode chegar a esta conclusão. Isso é, antes, sugerir que nosso impulso com relação à pornografia está conosco desde o surgimento dos polegares opositores e que voltando ao início de nosso experimento bípede vimos tal aquisição como parte natural da vida, uma das mais legais de fato, e como assunto natural para nossos proto-artistas.

 Com o receio de que isto seja visto como confirmação da idéia de que o pornô é uma recreação totalmente Neanderthal, talvez deveríamos ponderar a Grécia antiga e os frisos eróticos que decoravam seus centros cívicos; a magnífica estátua esculpida em mármore do deus Pan estuprando muitas das nossas atuais estátuas de quintal e, ainda, uma cabra realmente vadia. Imagens como estas eram claramente vistas como mobiliário urbano grego muito apropriado, retratos de um aspecto de existência mamífera que todos os mamíferos já conheciam e que eram menção confortável da qual ninguém, desde a criança mais jovem ao padre mais devoto, precisava se proteger. Na Grécia antiga vemos uma cultura plenamente descomplicada de suas inclinações eróticas, amplamente saturada tanto de imagens quanto de narrativas sexuais.

Notamos também uma cultura em que tais atitudes parecem ter funcionado muito bem, para os antigos gregos e para a humanidade em geral.  Eles podem muito bem ter sido erotomaníacos de olhos encovados e mãos peludas, mas olhando o lado positivo, eles inventaram a ciência, literatura, filosofia e, bem, a civilização como se apresenta. Abertura sexual e progresso cultural aparentariam ter andado de mãos dadas pelos capítulos introdutórios da história humana no Ocidente; tanto que, até o advento da Cristandade, ou mais especificamente do apóstolo Paulo, ninguém percebeu que todos nós deveríamos estar completamente envergonhados de nossos corpos, bem como dos processos a eles relacionados.

Até o Imperador Constantino ter copiado e colado o Cristianismo - junto a fragmentos soltos do Mitraísmo e do culto do Sol Invicto, adotando tal colagem teológica como religião do Império Romano -, não havíamos testemunhado o efeito de suas idéias e doutrinas num todo social. Se assumirmos uma perspectiva tradicional (e predominantemente cristã) do colapso de Roma, então a sabedoria convencional nos diz que Roma foi destruída por decadência, afundada sob a espuma de suas orgias, de sua própria liberalidade sexual.  Uma ínfima espuma para Gibbon, por outro lado, demonstra que Roma foi um bordel crescente, orgíaco e decadente desde seu surgimento, mais ou menos. Roma fornicou seu próprio caminho produtivamente, por muitos séculos, sem mostrar qualquer sinal de danos resultantes.

Entretanto, assim que Constantino introduz o Cristianismo compulsório no Império, este mal sobrevive outra centena de anos. Isso, basicamente, porque Roma havia confiado em tropas estrangeiras, na cavalaria egípcia, por exemplo, para defender o Império das falanges teutônicas que cercavam-no. Soldados estrangeiros estavam inicialmente felizes em se alistar, uma vez que Roma, naquele momento, assumia uma posição pagã e sincrética, que permitia aos recrutas reverenciar seus próprios deuses enquanto, fora do Império, retinham os hunos na Europa do norte. Uma vez que o Império fora cristianizado, entretanto, não havia mais esta opção. Os novos líderes cristãos de Roma decidiram que esta era sua escada ou caminho e, conseqüentemente, em terras longínquas, as estatísticas de recrutamento despencaram. Todos sabiam o que viria em seguida: bárbaros por todas as partes – Hunos, Francos, Visigodos e, pior ainda, os Godos com suas lentes de contato brancas em um olho só e coletâneas do “Cradle of Filth”¹. Roma, efetivamente, já era.

Então, recapitulando o que aprendemos até agora: culturas sexualmente livres e progressivas, como a da Grécia antiga, deram ao Ocidente quase todos os seus aspectos pró-civilização, enquanto que culturas repressivas, como a da Roma tardia, nos deram as Idades das Trevas.

Vamos avançar por cerca de mil anos de Saxões, Dinamarqueses e Vikings desrespeitados por saquear cogumelos Fly Agaric e arrebatar o caminho que eles trilham por uma espécie de inverno meteórico-nuclear, com cérebros pingando de seus machados enquanto urram por Odin e aplicam a tortura da águia² em qualquer um que opte por não fazer o mesmo.

Quando as luzes finalmente começaram a regressar ao mundo ocidental, encontramos uma Igreja cristã compreensivelmente preocupada em atrair devotos para seus bancos ásperos e que havia combatido a noção de arte erótica como modo de este alcançar este fim.

Erroneamente identificada como uma Sheelagh-na-gig, a figura de pernas abertas e vagina escancarada encontrada nas muralhas de muitas igrejas inglesas britânicas medievais, como uma deusa-mãe remanescente de alguma antiga religião, tinha, na verdade, origem puramente cristã e foi primordialmente concebida como imagem representativa da Luxúria. Se os folcloristas tivessem examinado melhor, então eles provavelmente teriam encontrado representações similares da Ira, Gula, Preguiça, Avareza e de todos os outros pecados mortais, apesar da tendência de aquela vulva petrificada e escancarada chamar mais atenção do que deveria, o que provavelmente não é acidental. Em igrejas daquele período, exibições de imagens pornográficas não eram de todo incomuns – nem involuntárias, qualquer que fosse a extensão de imaginação. Ilustrações de pessoas copulando eram uma grande produção quando chegaram às congregações e não eram pecaminosas em sua natureza, se pudessem ser demonstradas como prevenções ao fiel - instruções morais para descrever os atos vergonhosos que, uma vez cometidos, resultariam em danação e fogo infernal.  

O que a Igreja havia então cometido com tal manobra do prazer coletivo foi uma mudança sutil, mas extremamente importante no relacionamento entre a população e sua imaginação sexual. Implicitamente, era aceitável desfrutar de imagens sexuais, desde que se aceitasse, também, que tais atos eram impuros e que se sentir minimamente estimulado por eles era uma forma conveniente de se sentir envergonhado e culpado. Isso estabeleceu a associação imediata entre  inspeção de pornografia e intenso auto-repúdio ou vergonha, na qual se insere a maior parte do mundo ocidental.

Logicamente, não era apenas a Igreja primordial que desfrutava do monopólio de imagens de carne nua. Até o século dezenove, a única forma de um artista retratar sem nenhum risco o corpo despido era inserir o nu em um contexto que fosse clássico ou bíblico: Eva e a serpente, ou Leda e o cisne, de modo que você não pode realmente vê-lo tomando parte da cena. Observe, isto não é dizer que não havia artistas que desafiavam a censura, ou que a posição da Igreja quanto a esta questão era totalmente monitorada o tempo todo e em todos os lugares; se assim fosse, o decorrer da literatura inglesa desde suas origens saxônicas pareceria demasiadamente despreocupado com o recato sexual.

Alguns dos contos de Canterbury Tales, de Chaucer, são indistinguíveis dos arroubos sexuais do pornô-leve que invadiram os cinemas ingleses durante os anos 70: “Carry On Up The Fourteenth Century”. “Confessions of a Pardoner”. Shakespeare podia codificar imundícies de banheiro em descrições a respeito da letra de uma senhora: “O C dela, N’s e T’s, que faziam os grandes P’s”.

Dito isso, foi só quando William Caxton lançou sua prensa (leitores jovens, apenas pensem que era a internet do século quinze) que foi possível se desenvolver uma tradição da pornografia tal como concebemos o termo hoje. Assim como foi com a internet, a nova tecnologia foi posta ao propósito de disseminar imagens sujas quase imediatamente.  

Anterior a este ponto, quando a produção em massa tornou-se então uma possibilidade, a cultura erótica havia existido apenas no domínio privado de artistas e colecionadores, o que em termos públicos é quase o mesmo que dizer que ela não existia de forma alguma. Previamente, a Igreja nunca havia adotado uma posição quanto à pornografia, simplesmente porque não havia nenhuma e era relativamente demorado reconhecer uma, quando finalmente aparecia. Lá pelos dias de William Blake, na segunda metade do século dezoito, a Londres contemporânea se encontrava inundada de livros de foda e impressos escandalosos de todas as variedades, incluindo publicações essenciais como o inventário das putas – um sucesso de vendas, que introduzia a frase “lasciva como bodes e macacos”³ à língua inglesa, aparentemente como uma recomendação, um equivalente às quatro estrelas do Guia Michelin da época da Regência. Também é válido lembrar do final do século 1700 como a era em que, na França, o Marquês Donatien Alphonse François de Sade começou a usar, pela primeira vez, pornografia ultrajante, violenta, escatológica e freqüentemente entediante como faca sem gume para sátira social, encontrando nos grandes melindres da sociedade e de seus impulsos carnais um ventre vulnerável aberto ao ataque.

Ainda quando o século dezenove começou a se mover seriamente, um clima mais repressivo e autoritário prevaleceu, em meio a preocupações européias com relação a todas as revoluções dos 50 anos precedentes, combinadas à incerteza e paranóia características das Guerras Napoleônicas. Enquanto havia, inegavelmente, inúmeros panfletos imorais circulando por toda parte durante este período, tais panfletos já começavam a adotar associações subversivas furtivas, a postura corcunda que iria estigmatizar e amputar a pornografia pelos próximos cem anos ou mais.

Quanto ao envolvimento aberto de escritores, artistas ou quaisquer criadores de habilidade comprovada com o trabalho erótico, a área parece ter se tornado um deserto tóxico, venenoso à reputação e repleto de microorganismos que infectam a carreira profissional. Quando William Blake faleceu, em 1827, sua motivação em abraçar a sexualidade e a larga variedade de idéias sexualmente heterodoxas (centrais a toda sua filosofia) pouco adiantaram: seguidores superprotecionistas persuadiram sua esposa Catherine a remover do trabalho dele qualquer arte ou escrita abertamente erótica. Em suas notas e adornos que sobreviveram, ainda é possível ver que Blake tinha amor e também facilidade com imagens pornográficas, desenhando jovens engolidos por matronas carnudas; porém, seus acólitos haviam, evidentemente, decidido que o poeta-visionário que eles incorporaram no processo de construção ficaria mais angelical sem uma genitália. Nós só podemos imaginar, tristemente, as obras-primas masturbatórias queimadas na fogueira dos objetos profanos de Blake... O Dragão Vermelho Arremete A Mulher Vestida De Sol... e é melhor não nos torturarmos com todos os outros gloriosos artistas cujas conflagrações póstumas, verdadeira pornografia para piromaníacos, podem ter sido perdidas sem nenhum registro. Com o tom culposo e desconfortável assim estabelecido para o eminente reinado da rainha Vitória, encontramos a pornografia na condição que por muito tempo a definiu desde então: um gueto desolado ao qual nenhum artista respeitável desejaria ser relacionado e que, logo, torna-se a província daqueles sem qualquer inclinação literária ou artística. O cenário erótico outrora rico fora efetivamente abandonado pelos genuinamente talentosos. Transformou-se, por fim, em um gênero não apenas destituído de padrões, mas que também parecia pensar que não havia necessidade deles, apesar de durante as épocas vitorianas esta total desertificação ter sido ainda um caminho para o futuro; e a libido cultural ainda mostrava saudáveis jatos de vida, de tempos em tempos.



De fato, a fachada de moralidade abstêmia, que surgiu como parte do pacote vitoriano, parecia reproduzir condições de um efeito-estufa na imaginação lasciva de então. A pornografia, representada por periódicos como o The Pearl (A Pérola), conseguia prosperar, embora somente como cultura alternativa. Esta rede subversiva, no entanto, percorreu um caminho considerável abaixo da sociedade de superfície, de modo que as acomodações dos lares de subúrbios vitorianos encontravam-se perigosamente prejudicadas. Naqueles tempos, muito antes do surgimento das lojas de vídeos adultos, homens de negócios da cidade, retornando a suas casas para passar o final de semana com as esposas ou companheiras, requisitariam algum estabelecimento de becos para conseguir um equivalente ao lampião de gás: assim como o teatro antecede o cinema, a pornografia caseira, totalmente orquestrada, antecedeu o filme pornô. Peças de teatro pornô podiam ser adquiridas, de dramas de casais a situações grupais, se os negociantes entrassem num acordo. Estas publicações vinham em partituras musicais, de modo que se um dos participantes tivesse alguma inclinação musical, então ele ou ela poderia sentar-se ao piano e proporcionar um acompanhamento vigoroso a qualquer atividade que estivesse acontecendo sobre o tapete em forma de coração ou o sofá de crina de cavalo. Sim, eu sei que isso parece ridículo, mas foi Malcolm McLaren que me contou e, se você não pode confiar em Malcolm McLaren, pode confiar em quem?

Entretanto, a poderosa sugestividade erótica que existia na sociedade, atrás de portas trancadas, estava em oposição direta à atitude mascarada que se demonstrava nessa era (no que se refere a questões sexuais) e a pornografia crescente era abertamente depreciada, como afronta imperdoável à virtude pública. Certo colecionador de material erótico, detentor de vários manuscritos ultrajantes e não-publicados de Swinburne, Wilde e outros notáveis, havia sido prevenido por sua senhora esposa de que, assim que morresse, ela pretendia incinerar a coleção obscena inteira. Cunningly, o cavalheiro em questão, contornou o problema persuadindo o Museu Britânico a cuidar de um “caso particular” que continha seu excitante tesouro, um truque que ele apenas conseguiu realizar fazendo a custódia de seus tesouros instigantes, com a condição de que o Museu também obtivesse todas as suas primeiras edições de Cervantes. Na metade do século dezenove, a fotografia tornou-se, é claro, uma opção aos pornógrafos, apesar de ela ser um desenvolvimento que introduzia um elemento novo (e, mais tarde, bastante controverso) ao erótico, ou, no mínimo, ao debate moral relativo a ele: tais imagens não eram fruto de uma imaginação fértil, mas sim pessoas de verdade, que possuíam vidas para além da colheita fotográfica do cartão postal imundo que as continha. Preocupação com o bem estar moral dos modelos atingiria proporção igual, ou mesmo maior, à preocupação de pessoas públicas que poderiam ser expostas à influência corrupta do material. De volta ao início, contudo, quando uma máquina fotográfica era uma posse relativamente rara, ao menos em comparação ao bloco de notas e lápis que um indivíduo necessitava para fazer as fofocas no nível tecnológico mais básico, o modo dominante da pornografia era o literário, e fotos picantes eram, inicialmente, uma preocupação realmente restrita a uma minoria.

Durante o período vitoriano, o mainstream literário da leitura da categoria  debaixo-do-balcão variou largamente em palatabilidade, como é de se esperar em um campo recluso e desprezado, sem qualquer tipo de controle de qualidade. Um ardor sadiano4 por defloração, ou melhor, por estupro retratado sem seriedade, se adentrou maliciosamente em algumas narrativas - possivelmente até na maioria delas – mas é importante que não nos esqueçamos do material socialmente benéfico que encontrara seu único canal nesta forma tão desprezível.

A etiqueta sexual, e até certo ponto a política sexual, não podiam ser mencionadas ou discutidas nos confins da propriedade vitoriana, o que significava que era somente em um campo então banido para além destes confins que tais assuntos poderiam ser suscitados de modo seguro. Não é difícil em absoluto encontrar participantes de alguma grande orgia do período declarando, repentinamente, o meio-tempo em que discutirão tais questões como responsabilidade de cavalheiros, para garantir que suas parceiras ficassem totalmente satisfeitas com suas performances, ou para abordar a importância de sempre contentar os desejos da parceira, mesmo quando loucos de paixão.  Estes eram problemas que não podiam ser levantados pela Home Hints5 e, certamente, não eram ensinados na escola ou pelos pais de alguém. Parecia que a única educação sexual em circulação no século dezenove ocorria por meio das publicações que eram, por suas próprias definições, obscenas.

Para ilustrar esta prática, não precisamos olhar para além da carreira desordenada do membro ateu do parlamento no século dezenove, Charles Bradlaugh, cuja estátua indignada encontra-se apontando o dedo acusadoramente sobre uma rotatória na praça Abington aqui em Northampton. Em meio ao fluxo de atividades escrupulosas e, freqüentemente, de incidentes controversos que marcaram a vida deste político confirmadamente Old Labour6, está um feitiço no qual Bradlaugh foi aprisionado, junto à notória teosofista e agitadora das Garotas Fósforo7, Senhorita Anne Besant, pela distribuição de “material obsceno”. Tal material revela ter trazido conselhos sobre contracepção, arquitetado para mulheres da classe trabalhadora em um tempo em que dar à luz um terceiro filho consistia em uma estatística razoável de se morrer no parto. Material bastante indecente, como você pode imaginar.


Essa repressão intensa e largamente indiscriminada marcando a era vitoriana, apesar de não ser desobstruída (e apesar de em muitas formas poder até ter feito o pornô do período mais inventivamente subversivo), pôde ser vista como algo que, no final, obteve triunfo. Admitiu-se que a vitória foi árdua e de vida curta, com os excessos do século vinte grudados às asas e prestes a fazer sua ofuscante entrada; mas, ainda assim, para aqueles artistas flagrados brincando em águas eróticas quando a restrição chegou, deve ter parecido uma restrição decisiva. Enquanto havia, obviamente, uma extensa variedade de incidentes complexos e questões que discorriam sobre como as relações progrediram ao longo deste tempo, o evento mais emblemático nessa mudança de mares na atitude pública e em sua relação com o erótico deve ser, certamente, o julgamento de Oscar Wilde.

O que torna o declínio de Wilde tão importante é o modo como esse esteta e escritor maravilhosamente talentoso tornou-se um símbolo vivo da Decadência, movimento que aromatizou praticamente toda a arte ou literatura relevante composta entre 1870 e 1890. A estética do movimento, como definida por um dos primeiros decadentistas, Teófilo Gautier, requer que artistas não temam saquear da opulência da história ou lenda para seu imaginário, e, da mesma forma, sintam-se livres para fazer empréstimos das mais recentes contribuições de sua cultura – de seus “vocabulários técnicos”.  Dado que a alusão da Decadência era, assim, intencionalmente ampla, quase não surpreende que o erótico deve se tornar um elemento maior, informando toda a atmosfera que circundava o movimento. Pela primeira vez em um século, artistas genuínos estavam novamente empenhados aberta e significativamente com a expressão sexual em seus trabalhos e o que resultou na exibição do belo pavão deve ter parecido, a olhos vitorianos sexualmente daltônicos, um tecido vermelho frente a um touro. Mesmo as margens decoradas características da Art Nouveau estavam repletas de curvas e pêndulos formando seios ou testículos, até naquelas ocasiões relativamente raras em que não havia seios ou testículos retratados na ilustração.

A literatura testemunhou uma abundância de talentos estelares mais do que desejosos de se aplicarem ao erótico, desde os recuos ricos e sensuais encontrados no trabalho de J.K. Huysmans até os escritos pornográficos maduros de Guillaume Apollinaire ou Pierre Louÿs. Louÿs mostra-se um caso interessante no que se refere a um escritor abençoado com meios independentes, cujo trabalho recebeu enorme aclamação crítica bem cedo em sua carreira, após a publicação de As Canções de Bilitis, e que também encontrou fama literária repulsiva, designado a escrever sujeira explícita brilhantemente alucinada pelo resto de sua vida, seguro no reconhecimento de que tal escrito era impublicável fora do pequeno mercado de livretos impressos particularmente pelo entusiasta. 

A poesia deste período também foi agraciada por muitos talentos sublimes, que possuíam ouvido para o erótico, especialmente o trágico Ernest Dowson. Dowson, que matou a si mesmo com sua afeição pela praga verde - o absinto – e que se apaixonou por uma garotinha de 15 anos, morreu muito jovem e em relativa obscuridade, após enriquecer a fraseologia inglesa com expressões bastante conhecidas, como “Eu fui fiel a você, da minha maneira”, “Dias de vinho e rosas” e “E o vento levou”. Sim, este era Dowson.

Em se tratando de mídia visual, contudo, e apesar da competição ferrenha ao gosto de Alphonse Mucha, é o frágil Aubrey Beardsley quem emerge como emblema da expressão sexual das artes da Decadência. Morto aos 26 anos de idade, por tuberculose galopante, Beardsley revelava-se em sua arte, bem como em sua aparência pessoal, uma orquídea rara que não sobreviveria às avalanches morais amargas e desaprovadoras e às quais William Blake outrora se referira como “o inverno inglês”. Apesar de a vida pessoal de Beardsley se mostrar muito parecida com o próprio Beardsley assexuado (e apesar do fato de que, exceto pelas insinuações difamatórias de que mantinha relações sexuais com sua amada irmã Mabel Beardsley, divulgadas por Frank Harris, não há prova de que Aubrey tivera relações com alguém), os desenhos do artista possuem sexualidade viva. Talvez como o arquiteto virgem Antonio Gaudí, a única forma real de expressão sexual em Beardsley só se encontra em seu traço sensual e faminto.

Em uma carreira não superior a oito anos, o estilo notável de Beardsley impressionava a consciência do público através de obras ilustradas, como A Lenda do Rei Arthur, de Sir Thomas Malory, ou por meio das submissões sinistras e elegantes de Beardsley ao Livro Amarelo de John Lane. Apesar de o nome do artista ter se tornado um exemplo de peculiaridade (“Awfully Weirdsley”8, como um humorista o re-nomeou) o impacto de seu trabalho com seus anões inchados e sexualidade latente era tal que estabeleceu Beardsley e seu traço preciso como o espírito central da década de 1890. O punhado de imagens que ele disponibilizou para Salomé de Wilde estão entre seus melhores trabalhos, apesar de ao mesmo tempo serem estas as ilustrações que indiscutivelmente contribuíram com a maior parte da ruína de Beardsley.

Quando o julgamento de Wilde finalmente emergiu como escândalo nacional, nada nem ninguém outrora tocado pela luva perfumada de Oscar estava a salvo.  Ao mesmo tempo em que caminhavam da porta da casa de Wilde até o guia que o acompanharia ao tribunal, repórteres noticiaram que Wilde segurava ‘um livro amarelo’ embaixo de seu braço. Este era provavelmente o clássico de J.K. Huysman, Às Avessas, cuja edição corrente exibia uma capa amarela brilhante; mas, infelizmente, na atmosfera crescente de mobilização para linchamento, a diferença entre o artigo indefinido e o definido foi ignorada: “um livro amarelo” tornou-se “O” Livro Amarelo e na reação contra Wilde, a única e mais importante produção literária e artística da década de 1890 foi brutalmente varrida para fora da existência.

Beardsley, tendo ilustrado a Salomé de Wilde, estava (na mente do público) embaraçosamente conectado ao Oscar aprisionado e banido, além de ter assumido sua homossexualidade. Ironicamente, o artista não era amigo e nem contato íntimo de Wilde; na verdade o desprezava e se esforçaria ao máximo para evitar o dândi corpulento, se o visse chegando. Entretanto, sob o ponto de vista do público em geral, isto era irrelevante: evidentemente, ter adornado uma obra de Oscar Wilde era algo simplesmente tão ruim quanto ser pego em flagrante com o poeta. Certa noite Beardsley, horrorizado com tais insinuações, correu para a casa de um conhecido, esquelético, fatigado e com a barba por fazer. Pasmado em um espelho, com seus olhos lacrimejantes e preocupados, o artista não pediu ajuda a ninguém em especial, já que o rosto para o qual olhava poderia ser o de um sodomita. Na lista negra de todos os editores decentes e com o Livro Amarelo então destruído, Beardsley se viu repentinamente privado de uma renda, bem como de um ateliê para sua arte, enquanto enfrentava um distúrbio emocional e sua saúde declinava. Ele tosse em seu lenço de linho e observa as consequentes nódoas avermelhadas, papoulas fincadas na neve.

É neste momento que a cavalaria chega, tarde demais para salvar o dia, mas ainda a tempo para a última, desastrosa e heróica convenção: Leonard Smithers, ex-advogado e então editor-obsceno, um dos verdadeiros e obscuros heróis da pornografia. Seus esforços valiosos, seguintes ao julgamento de Wilde, para encontrar trabalho para Beardsley, Dowson e os demais resultou na publicação de um novo periódico decadentista, intitulado O Savoy9, o qual obteve sucesso e em muitos aspectos superou o tão-saudoso Livro Amarelo. Entretanto, para Beardsley, apesar de esta anistia do exílio cultural ser bem vinda, danos à sua confiança e auto-estima já haviam sido cometidos e pareciam ter causado repercussões no bem-estar físico do artista, ou, especificamente, em seus pulmões. 

Em 1898, Beardsley, em seu leito de morte, tem como último desejo que Mabs, sua irmã Mabel, se incumba de “destruir Lisístrata e todos os trabalhos obscenos”. A subseqüente publicação das ilustrações de Lisístrata e do romance pornográfico incompleto de Beardsley (que reconta a lenda de Vênus e Tannhäuser, intitulado Under the Hill) sugere que Mabel Beardsley demonstrou uma relutância consideravelmente maior em extirpar o erótico do trabalho do seu irmão do que Catherine Blake demonstrou com relação à obra de seu marido, e por isso devemos ser gratos a Mabel. Graças a ela, muitas peças de belo trabalho sobrevivem, o que, de outra maneira, não teria acontecido. É ainda desmoralizante, entretanto, considerar Aubrey Beardsley indo para seu túmulo desnecessariamente envergonhado de todo o fino corpo de trabalho sublime e influente que ele deu ao mundo. Assim como Wilde ou Ernest Dowson, o trabalho de Beardsley apenas enriqueceu a cultura humana com sua graça e beleza. Onde há, nisto tudo, alguma coisa para se envergonhar?

Porém, o clima moral que se aproximava ditava o contrário. Pela ocasião dos séculos dezenove e vinte, o império britânico estava em seu ápice: o império mais vasto que o mundo já havia visto, com uma subseqüente influência cultural maciça ao redor do mundo, para o bem ou, mais freqüentemente, para o mal. Apesar da estufada arrogância auto-relevante que aparentemente acompanha todos os impérios quando eles atingem alturas estonteantes, imediatamente antecipando seu declínio inevitável, a Bretanha estava se aproximando do novo século com um ninho completo de inseguranças irritantes; o império britânico estava se autodissociando e já estaria acabado no momento em que a Índia conquistasse independência, durante 1947.  

Ninguém estava totalmente seguro quanto às mudanças que o novo século traria e, sem dúvida, quando ele chegou à decadência em meio às artes, teceram-se inúmeros paralelos árduos com a Roma Antiga. Por qualquer motivo que seja, o novo liberalismo na arte e nos escritos dos Decadentes era visto como sintoma de uma ferrugem moral, um indicador de declínio. Assim, com uma severidade nascida do medo, o Império contra-atacou através do julgamento de Wilde e de suas conseqüências encolhidas e assustadas, impondo o que somava a um novo Puritanismo que teria impacto direto no mundo ocidental. Na Alemanha, por exemplo, o desejo de reter e regular a expressão sexual adotou acessórios que, talvez inevitavelmente, fossem pseudocientíficos. Como em K.M. Benkert, que cunhou o termo ‘homossexualidade’ como expressão a ser utilizada por médicos ou patologistas, a fim de que quase todas as formas de sexualidade socialmente indecorosas (que seriam, praticamente, toda a sexualidade) fossem vistas como uma doença que pode um dia ser curada pela ciência. Uma seleção engenhosa de procedimentos médicos foi produzida, por exemplo, para proteger o adolescente vulnerável de indesejáveis incidentes de estimulação corporal como aqueles que, dizem, ocorrem a garotos adolescentes, quando estão adormecidos.

Enquanto as mãos do garoto estariam, obviamente, atadas com firmeza à cabeceira, para prevenir atos deliberados de masturbação, este procedimento não precavia o rapaz da excitação sexual durante o sono, possivelmente durante o sonho, que era claramente uma situação bastante intolerável na Alemanha do fim do século. Para resolver este problema, alguém desenvolveu um anel com pregos pontudos em todo o diâmetro da superfície interna, que poderia ser colocado confortavelmente ao redor de um pênis ainda sem ereção, mas que o perfurariam caso acontecesse de o órgão se expandir por algum motivo. Muito popular entre os pais de garotos pequenos, na Alemanha e Áustria do início do século vinte, esse instrumento de tortura sexual sadiana durante a infância produziria a geração notoriamente equilibrada dos jovens Super Homens (Übermenschen) que aderiram ao notório degenerado sexual Adolf Hitler em suas tropas.

Só para recapitular, então, culturas sexualmente progressivas nos deram matemática, literatura, filosofia, civilização e tudo o mais, enquanto culturas sexualmente restritivas nos deram as Idades das Trevas e o Holocausto. Não que eu esteja tentando aditivar meu argumento, é claro.

Apesar de esta onda de repressão fazer suas vítimas, não podia, contudo, impedir o século vinte de acontecer, nem de trazer com ele novas tecnologias que inevitavelmente mudariam todos os aspectos de nossas vidas, incluindo nossa pornografia. O Filme havia aparecido no final do século dezoito, imediatamente dando origem às primeiras películas pornográficas, mas como aconteceu com a câmera (que havia chegado antes), o custo total do equipamento necessário para se produzir um filme azul medianamente satisfatório fez de tais esforços uma atividade para poucos. Foi, entretanto, através dos aprimoramentos feitos na tecnologia de impressão de William Caxton que surgiria o próximo fluxo de vida sexualmente explícita. Técnicas de impressão inovadoras e mais baratas, como o mimeógrafo, estavam entrando em cena, o que significava que a publicação em breve se tornaria um processo muito mais democrático e não mais território exclusivo dos abastados e cultos.

Os anos 30 trouxeram o que na Bretanha ficou conhecido como publicação ‘cogumelo’, um equivalente à muito mais intensa explosão de polpa que estava acontecendo nos EUA. Apesar de nesta época ambos os países terem as leis relacionadas à obscenidade em seu devido lugar, em ambos os casos as leis eram tão mal definidas que permitiam uma grande margem para interpretação. A ousadia era tolerada até os níveis implícitos do soft, apesar de ser fácil, em tal território obscuramente delineado, cruzar a linha de maneira acidental e aí encontrar o centro de um pânico moral, como aconteceu com as polpas ‘apimentadas’ que surgiam naquele lado do Atlântico, ou com os romances ‘Hank Janssen’ publicados por aqui. A sede do público por pornografia não fora, evidentemente, diminuída; porém, por exagero bruto e uma política de tolerância zero (como a ação que declarou o britânico Donald McGill, veterano dos cartões postais obscenos10, culpado por suas insinuações imorais), as autoridades podiam somente controlar a tampa de sua trêmula e furiosa panela de pressão.            

Isto não é dizer que não havia fugas eróticas de tempos em tempos. O mundo subterrâneo das publicações de pornografia explícita havia sobrevivido a todos os altos e baixos do novo século, permanecendo mais ou menos intocado graças à virtude de sua semi-invisibilidade. Contudo, além de um punhado de reimpressões do século anterior e de explosões irregulares de material novo, mas raso, não há muito a se recomendar da produção pornô da década de 30, a não ser os panfletos-fenômeno de oito páginas expedidos na América durante este período, também conhecidos como “Bíblias de Tijuana”11, possivelmente porque se assumia que o sexo, bem como qualquer coisa relacionada a ele, teve início em Tijuana.

Os oito-páginas, materiais rudes e rudemente produzidos, são, entretanto, um estágio fascinante na evolução dos quadrinhos e também do erótico. Apesar de haver vários registros duvidosos de como tais livros passaram a existir, a versão mais atraente e apelativa é aquela em que três damas clandestinamente formaram uma parceria para incrementar seus rendimentos, com uma das mulheres cuidando da escrita, outra do desenho e a terceira cuidando da negociação/distribuição final do acordo. Se isto é verdade ou não, o fato que permanece é que nos catecismos pode-se ver uma centelha socialmente perversa que, finalmente, supriria a base para toda a tradição Americana de se contar uma sátira mordaz e suprema de forma cômica. 

Os catecismos mais memoráveis foram aqueles que apresentaram personagens famosas das tirinhas diárias de jornais, languidamente entregues em retratos fiéis aos estilos utilizados pelos autores dos originais. O grande apelo em mostrar, sistematicamente, figuras não-sexuais como Blondie, Jiggs ou Popeye participando de episódios pornográficos reside no grande contraste, revelando um conteúdo sexual que aparenta ser mais sujo quando está no contexto de um ícone cultural antes imaculado. Há também o prazer subversivo que se obterá ao depreciar a visão anódina e assexuada que as tirinhas do domingo faziam da sociedade - e parece totalmente provável que quando Harvey Kurtzman esboçou o protótipo de seu gibi seminal Mad, na década de 1950, os oito-páginas eram uma parte influente da combinação satírica. O ataque de Kutzman a Archie (que supostamente garantiu o tratamento punitivo da linha de gibis E.C. por uma autoridade dos gibis Draconian, supervisionada pelos editores dos Gibis Archie) apresentou o aparentemente ‘típico adolescente’ como segurança trambiqueiro de um colégio e Betty e Veronica como menores maconheiras; tal retrato poderia facilmente ter sido retirado de um oito-páginas, apesar de ser um oito-páginas no qual o fluxo da sexualidade, agora, era apenas uma sugestão e no qual o imensamente talentoso Bill Elder fazia um trabalho muitíssimo superior, reproduzindo e subvertendo todo o estilo Archie de um jeito que seus talentosos precursores amadores Tijuana não haviam feito.

Além de uma lista de personagens selecionadas de tirinhas de jornais, os panfletos de Bíblias Tijuana também utilizavam atores e atrizes contemporâneos, como Mae West e Laurel & Hardy como suas atrações especiais. Interessante notar que celebridades do crime na década de 30, como Nelson Baby-Face ou John Dilinger possuíam seu próprio subgênero, brincando com a óbvia afeição do público por um vilão encantador e também por uma aura de potência sexual quase mítica que cercava tais personagens na imaginação popular. Nesta combinação de um herói anti-social selvagem com o impulso visceral de pornografia irrefreada, as Bíblias Tijuana estavam antecipando os gibis alternativos que viriam a explodir, partindo de São Francisco, em trinta anos ou algo assim.

De volta à primeira metade do século vinte, contudo, os arroubos eróticos na sociedade encontravam suas mais vivas condutas de expressão no teatro burlesco e, um pouquinho mais tarde, nos filmes nudie-cutie12, os quais o burlesco ajudou a gerar. Durante as décadas de 50 e 60, diretores heterodoxos como Russ Meyer quase conseguiram uma voz para a América e sua inconsciente “vida dos sonhos”, com seus impulsos libidinosos misturados a uma violência de humor demente, além de sexo exuberante e infantil, marcado por uma espécie de inocência que se comparava, no mínimo, à dieta triste e precária que nos é servida hoje. Miseravelmente descrito como o “Fellini campestre”, Meyer parece ter tido uma imagem de deusa específica e particular, que recebia carne generosa com suas mulheres icônicas, como Tura Satana ou Kitten Natividad. Uma década depois, como aconteceu com Robert Crumb, a clausura de Meyer em um único tipo físico feminino parece ressoar as origens primordiais do erótico, a Vênus do Pântano com um tratamento de couro brilhante e capturada não em pedra, mas em celulóide.

Na cultura dos anos 50, inclinações sexuais poderosas eram evidentes, pronunciadas em oposição ao opressivo e assexuado ethos Eisenhower/ McMillian daquele tempo.

Escritores como Hubert Selby Jr. e Henry Miller, que haviam produzido na década de 30 e foram excluídos da publicação na década de 40, começavam a encontrar um novo público apreciador e, às vezes, até mesmo editoras estrangeiras, como a Olympia Press, fundada por Maurice Girodias. A Playboy de Hugh Hefner tentava estabelecer o pornô leve como uma declaração de um estilo de vida chique e uma nova onda de comédia ‘tarada’ se constituía e encontraria seu apogeu nas tiradas não censuradas e ocasionalmente brilhantes de Lenny Bruce. Enquanto isso, na Mad de Harvey Kurtzman havia uma nova síntese afiada de humor moderno e judeu, que tomava referências sexuais como uma seção padrão de seu repertório humorístico (como na paródia que Kurtzman fez de Júlio César, na qual o grito “Alguém está chegando lá!” de um guerreiro centurião é respondido com um balão de fora do quadro que diz “Oooh, estou gozando!”). Em outros lugares, música nova e excitante vertia dos rádios, sexual e com influência negra, rotulada “Rock and Roll”, simplesmente outro eufemismo para o ato sexual, como também o “Jazz” havia sido. E o mais importante de tudo, em São Francisco, 1955, o poeta Lawrence Ferlinghetti inaugurava sua editora City Lights Books, em North Beach, o quarteirão italiano notoriamente boêmio da cidade, previamente habitado por anarquistas anti-Mussolini.

Ao saber da primeira performance pública do trabalho Uivo (Howl) do jovem poeta nova-iorquino Allen Ginsberg, inspirado em William Blake, na Six Gallery em 1955, o intimidado Ferlinghetti publicou-o pela City Lights Books em novembro de 1956. Apesar de o livro inicialmente ter recebido atenção mínima - muito surpreendente por um primeiro trabalho de um autor desconhecido, no bastante negligenciado campo da poesia - em junho de 1957 uma vistoria policial na City Lights Books e um subseqüente julgamento por obscenidade levou Uivo e Outros Poemas para a linha de frente da consciência nacional. O juiz Clayton Horn, surpreendentemente, determinou que uma obra não poderia ser julgada obscena se possuísse “a mais ínfima significância social positiva”.

A decisão do juiz Horn deu a entender que a City Lights poderia publicar Uivo e muitas outras obras controversas sem medo de sofrer represália daqueles que possuíam autoridade. Apesar de alguns escritos serem ainda muito radicais para se publicar em um ano ou dois, como os dez capítulos iniciais de Almoço nu (The naked lunch) de William Burroughs (que havia sido rejeitado pela Chicago Literary Revue) o veredicto significava que os escritores Beat poderiam então se cristalizar ao redor das locações de Ferlinguetti na Avenida Columbus 261 e ativar aquele que é possivelmente o movimento literário mais excitante do século vinte. Significava, também, que um precedente legal importante se estabelecera, garantindo imunidade de perseguição ao material sexual, se este pudesse ser comprovado como socialmente significativo ou dotado de mérito artístico.

Esta foi a defesa adotada com sucesso anos mais tarde no largamente celebrado tribunal de acusação inglês contra O amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, durante o qual o conselho de procuradoria resumiu uma atitude acomodada com relação à pornografia quando sugeriu que nenhuma pessoa decente permitiria a suas “mulheres ou empregadas” que lessem tais obras. Este único comentário, traindo uma visão vitoriana ultrajante e antiquada das questões sociais, convenceu o júri a votar pelo lado da defesa. O ponto de vista por trás da citação de perseguição é que enquanto ‘nós’, sendo homens brancos de certa idade e posição sexual, somos por demais desenvolvidos para sermos degradados por tal material, seus prováveis efeitos sobre aqueles moralmente mais fracos do que nós (os jovens, as classes trabalhadoras, estrangeiros ou mulheres) seriam devastadores.    

Enquanto um trabalho de poesia beatnik moderna como Uivo poderia ser seguramente ignorado pela maioria dos cidadãos comuns, o julgamento de Lady Chatterley significava que a maioria dos lares do mundo ocidental viria a possuir uma cópia muito manuseada do que é, de fato, uma obra relativamente menor de D.H.Lawrence. A matéria do sujeito sexualizado, aos olhos do público, havia se tornado normal, o que abriria as represas ao derramamento de programas televisisvos sexualmente sugestivos ou explícitos, filmes, livros e letras de canções pop que ajudariam a definir a década de 1960, apesar de tal progresso não ter, obviamente, transcorrido totalmente desimpedido. Livros ainda eram banidos, filmes ainda eram censurados e, em uma das exposições de arte erótica praticamente desconhecidas de Londres, desenhos de John Lennon foram confiscados pela polícia, juntos de muitas impressões da Lisístrata do pobre e velho Aubrey Beardsley, que naquela época estava morto há 70 anos. Organizações como a Viewers and Listeners Association (Associação de Observadores e Auditores), comandada pela autopromotora e auto-intitulada guardiã moral Mary Whitehouse, colocaria pressão na BBC para moderar certos programas televisivos ou banir das rádios a versão de Scott Walker para o clássico Jackie, de Jacques Brel, por temer que suas referências a “bichas autênticas e virgens falsas”13 corrompessem os jovens.

A batalha sem trégua que a expressão sexual enfrentou durante a permissiva década de sessenta é uma indicação de quão profundamente os sentimentos encontravam a questão. Evidentemente, o mesmo pudor social relacionado ao sexo, alvo do Marquês de Sade na França revolucionária, ainda era um ponto maleável, que os ansiosos por criticar a sociedade poderiam prejudicar muito mais do que simplesmente atacar. O movimento hippie (crescendo na metade dos anos sessenta graças a vários pontos de referência, que incluíam as extravagâncias da art noveau de Aubrey Beardsley, William Blake e a resposta uivada de Allen Ginsberg a Blake) foi rápido em adotar a revolução sexual como forma de confronto favorita.

Disto, não inferimos que uma fonte de pornô-hippie funcional não jorrou. Jorrou, apesar de suas manifestações terem sido, na maioria das vezes, obscuras em tal grau que mal causou uma ondulação na superfície da consciência pública. Fuck you: a magazine of the Arts representou o “ataque total” de Ed Sanders à cultura, algo que ele mais tarde transformaria em música, com os Fugs, cujos convites para encontros grupais contendo as mais variadas descrições eram recebidos com alegria. O Livro do Amor (Love Book), de Leonore Kandel, um volume magro de poesia erótica, inexplicavelmente processado em São Francisco, parecia quase o último suspiro dos novos puritanos, apesar de eles continuarem a pronunciar chiados esporadicamente (antes de ressurgirem com um rugido). Na época em que a Essex House começou a publicar verdadeiro pornô hippie – Notas de um velho safado, de Charles Bukowski, A imagem da besta, de Philip Jose Farmer, Agency trilogy, de David Meltzer – todo o conceito do pornô-em-escrita pareceu ficar obsoleto, em grande parte graças aos esforços de Barney Rosset e de sua editora Grove Press em redefinirem as fronteiras da literatura aceitável. Eles foram a tribunal a favor de O amante de Lady Chatterley, Trópico de Câncer e Almoço Nu, vencendo cada caso e expandindo as fronteiras um pouco mais a cada processo. Mas, de fato, uma imagem vale mais que mil palavras.

Em nenhum lugar este ataque contra-cultural à conformidade sexual é mais bem exemplificado do que nas primeiras tirinhas do extraordinário Robert Crumb, cujos esforços pioneiros na imprensa alternativa tornaram-se um trabalho que se provaria seminal em todos os sentidos. Utilizando um estilo seguramente memorável e, portanto, altamente subversivo, Crumb se afundou alegremente nas águas mais restritas e nunca dantes navegadas do inconsciente coletivo, servindo uma visão da América enquanto vista através de olhos sexualmente obsessivos, personificados por Snoids e Yetis nubentes – com os conselhos mais proibitivos de Joe Blow retirados dos trajes reveladores dos subúrbios, expostos em preto e branco para todos verem. O fato deste trabalho de Crumb ser recebido entusiasticamente pelo espectro social viria sugerir que, após a superação do choque inicial, muitas pessoas descobriram que esta era uma visão que elas reconheciam. Elas sabiam de onde Crumb estava saindo, como dizem por aí.

Enquanto havia precursores óbvios para a explosão dos quadrinhos alternativos na Mad, nas Bíblias Tijuana e na editora de fanzines da qual Crumb fazia parte, foi Crumb quem instaurou a linha para os cartunistas subseqüentes, com o lançamento da Zap #1, que o artista vendia através de um carrinho de bebê, para cima e para baixo de toda a extensão coberta de malucos da rua Haight.  Assim como foi com os Sex Pistols quase uma década mais tarde, o trabalho de Crumb foi o canal que veiculou as carreiras igualmente grandiosas daqueles que o seguiram.  O trabalho de Crumb em Zap, junto ao de talentosos parceiros como S. Clay Wilson, Spain ou Robert Williams, mais vários subversivos que a Zap inspirou, viria a ser uma maré alta para a pornografia, festivamente criada com intenções social e artística (o brilhante cartunista alternativo Sharon Rudahl, utilizando o pseudônimo Mary Sativa, escreveu The Acid Temple Ball, um romance extraordinário – publicado como parte da série “Traveller’s Companion” da editora Olympia Press – que relatava adoravelmente as experiências sexuais de uma mulher sob efeitos de diferentes combinações de substâncias ilegais).

Quando a resistência dos quadrinhos finalmente se livrasse do fantasma, na década de 70, não haveria nada com energia ou espírito verdadeiros o suficiente para tomar o lugar deles. Crumb lutara heroicamente com a Weirdo e outras publicações e, embora seu trabalho permanecesse maravilhoso como sempre (até mesmo melhorando e progredindo), agora havia a idéia de um maestro solitário trabalhando por conta própria, e não de um mentor com todo um movimento socio-artítisico surgindo atrás dele.

Grosso modo, o que aconteceu na década de 70 foi que as liberdades sexuais duramente obtidas nas décadas anteriores e conquistadas nos campos da ideologia tornaram-se, como se previa, um mercado ativo, pronto para ser explorado. Durante os anos 70, produtores de filmes obviamente encorajados pelo crescimento da expressão sexual nas artes durante os anos 60 decidiram que os humildes filmes pornôs poderiam ser embrulhados em orçamentos maiores e acrescidos em seus valores de produção. Poderiam receber novos rótulos e vestimentas que viriam a sugerir mérito artístico e, assim, se tornar cinema de mercado de massa, pela primeira vez na história. Em títulos como “O diabo na carne de Miss Jones”, “A estréia de Misty Beethoven”, “Atrás da porta verde” e muitos outros, diretores pornôs tentaram transcender as limitações simplórias e baratas do gênero que escolheram, com maior ou menor sucesso.

Mesmo assim, o público parecia gostar da nova disponibilidade do pornô oficializado e respondeu a ela com entusiasmo suficiente para que tais filmes proliferassem, até o ponto em que a idade verdadeira de Traci Lords foi revelada. Alegar relevância artística ou social era inútil frente a uma acusação de um estatuto legal e com esta trinca que as autoridades abriram no escudo criativo do pornô, a indústria parece ter rebatido um retrocesso imediato, rapidamente transferindo o filme pornô de alto custo para a história.

A esta hora, é claro, os anos 80 estavam à espreita e o filme pornô seria resgatado pelo surgimento maciço do mercado do vídeo domiciliar – mas, por este motivo, sua programação e importância seriam alteradas. Enquanto os valores de produção superiores da década de 70 se destinaram a arrastar para os cinemas um público principal misto, os espectadores do vídeo para casa eram identificados (talvez, em parte, corretamente) como uma base cativa e entusiasta do mercado, inteiramente irrestrita em seus hábitos televisivos. Sutilmente – mas relevantemente -, a opinião da audiência sobre ela mesma também mudou. Enquanto sentar-se num cinema para assistir pornografia junto a uma centena de outras pessoas ou casais normais poderia ser plausivelmente uma experiência coletiva libertadora e um indicador de tolerância liberal e sofisticação, assistir a um filme pornô totalmente sozinho, atrás de cortinas fechadas, é uma questão muito diferente e que invoca uma atitude também diferente. A experiência é geralmente furtiva, secreta, envergonhada. Enquanto pode ser aceitável mencionar no escritório que na noite anterior você foi ao cinema ver “Garganta Profunda”, só para saber o porquê de todo o barulho, você naturalmente poderia pensar duas vezes antes de brindar seus colegas informando-lhes que na noite anterior você ficou em casa se masturbando com “Virgens Anais IV”.

Apesar de mais maciçamente distribuída do que jamais fora, a pornografia estava agora reduzida a um mercado de massa, sem qualquer padrão ou critério, rapidamente acumulando uma presente atmosfera de vergonha e degradação. Além disso, enquanto a cultura da pornografia pudesse ser mantida entre paredes, ela permanecia uma comodidade muito lucrativa, um hábito viciante e cada vez mais caro. Como observado anteriormente, a fantasia sexual é algo gratuito para qualquer um que ainda possua imaginação sexual, mas o vídeo ou DVD pornô nos vende um substituto sem vida e sem lustro, para algo que nós mesmos poderíamos criar muito mais satisfatoriamente. Isso, aos olhos das autoridades, deve ser a situação perfeita para a pornografia: torná-la disponível, de modo que os lucros e taxas intensos possam rolar, mas mantê-la carrancuda e desonrável para que não surja um Allen Ginsberg bradando que isto é arte, é liberdade civil, é um movimento, é política, é qualquer coisa que soe perigosa.

É claro que sexo e expressão sexual são políticos, e sempre foram, mas foi somente no final dos anos 60 e início dos 70 que eles passaram a ser vistos assim. Nascido da mesma contracultura que deu à luz Robert Crumb nos anos 60 surgiu o feminismo, que proporcionaria ao artista suas críticas mais furiosas. As feministas assumiram a posição de que a pornografia explorava e degradava as mulheres, o que era, certamente, um argumento de difícil discordância, junto ao brilho de grande parte do material que estava disponível à época. Se tivesse ficado apenas naquilo – um argumento destacado como elemento para um debate crônico -, poderia não ter polarizado a comunidade liberal ao ponto em que, sem sombra de dúvida, o fez. Ao invés de propor as idéias seguindo um raciocínio, o feminismo daquele tempo as expunha como aforismos de alta moral. E ao invés de considerar as questões levantadas pelo feminismo apropriadamente, homens liberais sentiram-se vítimas de um ataque gratuito acerca de sua sexualidade, respondendo irritadamente. Feministas que protestavam conta o pornô se encontrariam numa emboscada com equivalente indignação de partidos da esquerda, em parte justificada, em parte não.  

Por exemplo, é importante distinguir entre as objeções de feministas monótonas e as de cartazes cristãos, mesmo quando eles fazem parte da mesma fila de piquete do lado de fora de uma locadora de filmes adultos. Os argumentos feministas (mesmo aqueles com os quais alguém pode não concordar) são, pelo menos, baseados nos princípios da lógica e, portanto, podem ser debatidos, com preceitos passíveis de falsificação e que podem ser provados ou invalidados. Os argumentos religiosos contra a pornografia, diferentemente, fundamentam-se na idéia de um ser supremo insatisfeito, prova de uma existência que assim nos escapou.

Isto não é dizer que Deus não existe, nem que religiosos não têm perspectiva qualificada, é simplesmente notar que as idéias predicadas à específica existência de uma divindade não são idéias racionais e, logo, não têm lugar em uma discussão racional. Eu sinto muito, eu não faço as regras. A vida é assim e nós teríamos de mudar a significação da língua inglesa antes de poder fazê-la de outra maneira.  

Porém, apesar da base racional do programa feminista, ele foi servido a todos, compreensivelmente, como confronto e intuições vindas dos dois lados diziam que um debate razoável nunca seria possível: a esquerda já fragmentada se dividiu em terrenos de gêneros, ambos em suas posições rígidas e obstruídas, homens insistindo que era totalmente uma questão das liberdades civis e mulheres insistindo que era questão de política sexual. Ambos estavam corretos, é claro, mas como um não falava com o outro, o debate permaneceu inabalável.

As atitudes com relação à pornografia não causaram apenas um cisma nas linhas liberais, elas principalmente rasgaram o próprio feminismo bem no meio. Muitas mulheres (e alguns homens que ainda acreditavam que as mulheres tinham um caminho a percorrer antes de atingir a igualdade social) relutavam em se descrever como feministas por causa das conotações severas e intolerantes que o termo havia assumido. Rejeitando o dogma do feminismo na pornografia,  algumas mulheres se esforçaram em defender o gênero em publicações pró-sexuais, como On our backs (Em cima de nossas costas), com título atrevidamente tomado da revista feminina linha dura Off our backs (Fora de nossas costas). Por todo o lugar viam-se os primeiros agitos de organizações antigas que, mais tarde, se autointitulariam Feministas Contra a Censura.

Apesar de no final das contas serem estas vozes femininas discordantes a sugerir uma solução possível ao distanciamento improdutivo da questão da pornografia, qualquer debate ético acerca do assunto seria varrido para um dos lados, dominado por acontecimentos e pelo assalto socialmente transformador da tecnologia. Assim como os vídeos domiciliares significavam a possibilidade de um pornô ser desfrutado em privacidade, por um abrangente segmento da população,  a chegada da internet conduziu tudo isso a um passo além. Enquanto alugar vídeos ou DVD's ainda traz o risco de ser pego por uma conhecida num esbarrão furtivo ao sair da locadora pornô, ou de uma esposa desaprovadora descobrir o acervo pornô do marido, a internet surge capaz de remover esta barreira final. Ficou claro que a grande maioria das pessoas não temiam tanto a pornografia como temiam ser descobertas.   

Nos anos 70 a Inglaterra foi assolada por greves que culminaram na semana nacional dos três dias, enquanto lojas e comércios eram fechados por falhas de energia. Como os blecautes aconteciam inesperadamente, lojas e supermercados descobriram que ocorriam ataques repentinos de furto oportunista. Mesmo em redes de mercado refinado, como a Marks & Spencer, gerentes descobriram que seus primorosos clientes, predominantemente de classe média, não eram contrários a escorregar algum item caro para o fundo de seus casaquinhos quando as luzes se apagassem. A moralidade pública deve, obviamente, ser tida como algo a ser observado, a fim de se manter a posição social do sujeito - mas quando ninguém pode ver nada é outra história. 

Assim foi com a chegada da internet: no ciberespaço, ninguém pode ouvir você gozar. Desde que sabemos que grande parte de todo o movimento desta informação superexpressa é destinada a visualizar ou baixar pornografia, devemos assumir que a demanda pelo pornô é quase universal. Curtir uma baixaria não parecia mais uma atividade confinada a tarados isolados, mas sim um passatempo que seres humanos simplesmente desfrutam quando são deixados a seus próprios instrumentais. Também parecia que o pornô comercial e tornara o papel de parede imprevisto da sociedade contemporânea, tão onipresente que é aceito como parte da vida sem questionamento.

A pornografia, ou aquilo a que apenas recentemente seria referido como pornografia, tornava-se então parte da cultura dominante. Apresentando vestígios ou mesmo substâncias sexuais desde sua emanação, a música pop experimentava pela primeira vez a adoção consciente de atitudes abertamente pornográficas durante os anos 80, com todo um repertório de referência e imaginário pornográficos, empregado por artistas como Prince, Madonna, Frankie Goes to Hollywood e uma série de outros. Uma vez que Chuck Berry fora banido por oferecer mensagens explícitas sobre seu "ding-a-ling"14, e Lou Reed que, com Candy Darling o chupando em seu passeio pelo mundo selvagem15, só escapara porque os censores britânicos não compreenderam o termo, as Spice Girls agora comunicam sua necessidade de zig-a-zigar16 a uma audiência formada por garotas de 10 anos - com impunidade completa.  

Convenientemente embalados como um artefato taxável, o imaginário erótico permeia nossa cultura a um ponto que anteriormente era inimaginável. Enquanto a pornografia utilizada por indivíduos para seu prazer pessoal (como apoio à masturbação) ainda é vista como algo vagamente constrangedor, seu uso em um sistema corporacional,  para vender mercadorias a nós, consumidores, é pura alegria.

Anunciantes enchem outdoors e nossas telas de televisão com ela, tentando incrementar seus salgadinhos, carros ou linha de agasalhos com empolgação, assim eles podem movimentar mais unidades. Empresários de rock, pop e rap vestem os vídeos e as letras de seus artistas com pornografia sem qualquer comentário, para que, em meio a uma atmosfera de crescente preocupação e pânico acerca da pedofilia, seja perfeitamente normal que Britney Spears desfile um figurino fetichista de uma colegial que, na vida real, não vestiu nada parecido em qualquer período deste século.

A palavra 'foda', inflamável quando nos lábios de Allen Ginsberg, Lenny Bruce ou Kenneth Tynan, pode ser mimosamente acrostizada no logotipo da franquia de confecções French Connection no Reino Unido17. A grande diferença entre a pornografia tradicional e a nossa pornô-cultura comercial, entretanto, é que enquanto a última é mais limitada e suavizada do que a anterior, não é mais algo procurado por um indivíduo ansioso e permissivo, mas, ao contrário, é uma característica da sociedade que não se pode evitar, gostemos ou não. Como uma cultura, somos mais intensamente sexualizados e estimulados do que jamais fomos e considerando a proporção crescente de crimes sexuais, parece que nós não estamos lidando muito bem com isso.

É possível que isso aconteça porque, como moralistas cristãos e até algumas feministas desatualizadas ainda sugerem, a pornografia corrompe a fibra moral de suas vítimas até o ponto em que as fantasias tornam-se estupro ou abuso sexual real? Provavelmente não, se por um momento considerarmos somente quantas pessoas são expostas a imagens pornográficas em algum momento de suas vidas e apenas uma porcentagem ínfima já obteve apelo para estupro ou outros crimes sexuais. Enquanto assassinos seriais e estupradores como Ted Bundy podiam alegar, na véspera da execução, que foi a pornografia a mentora de seus crimes e violações, isso omite que, para cada psicopata que usa tal alegação, há cem mil pessoas normais que aparentemente nunca foram empurradas ao extremo da monstruosidade por qualquer coisa que tenham assistido ou lido. Além disso, eu particularmente ainda estou para encontrar um material pornográfico que apresente alguém removendo todas as maçanetas do interior de seu carro, ou engessando sua presa para confortá-la com uma falsa idéia de segurança. Talvez seja um nicho do mercado que eu ainda tenha para percorrer ou, possivelmente, tais idéias tenham vindo da própria psicopatologia do infrator, e de forma alguma da pornografia. 

Deveríamos concluir, então, que não há conexão entre a cultura erótica saturante do ocidente e as estatísticas crescentes de crimes sexuais nessa cultura? Provavelmente, outra vez, não deveríamos, apesar de a conexão poder não ser tão simples e direta como esperamos. É instrutivo analisar diferentes países à luz de sua reação à pornografia,  onde não parece que o problema é tanto com a pornografia de fato, como é com o modo de vermos a pornografia como sociedade. Na Dinamarca, Espanha e Holanda é possível encontrar pornografia explícita exibida em quase todas as bancas de jornal, uma fonte de renda tão lugar-comum que pouco se nota. Aceitando a pornografia como fato da vida, o constante sentimento de vergonha e culpa que encontramos nos Estados Unidos e Inglaterra fica notavelmente ausente. Também notável nas culturas porno-tolerantes acima mencionadas é a baixa taxa de crimes sexuais (em comparação à do Reino Unido e Estados Unidos) que estas culturas desfrutam, quase como se dentro delas o pornô estivesse apto a funcionar como uma válvula de segurança social, de uma forma que as sociedades inglesa e americana não permitem. Sabendo que a internet é global, não se trata destes países terem menos ou mais pornô do que nós, nem de serem menos sexualizados pela cultura geral do que nós. Será possível, simplesmente, que seguindo o exemplo dos devotos do fetiche no Paleolítico ou Grécia Antiga, eles a tratem diferentemente e, por sua vez, sejam afetados diferentemente por ela?  

Considerem como tratamos a pornografia, em cada lado do Atlântico: vivendo em culturas que foram deliberadamente sexualizadas por propósitos comerciais, não é improvável que parte da população se encontre superestimulada e tente extravasar esta condição, geralmente utilizando qualquer forma de pornô mais imediatamente disponível. Infelizmente, em sociedades que seguiram o comando da Igreja antiga, deixando as pessoas observarem a pornografia para o mero entendimento de que fazer isso é pecado, a tal liberação será acompanhada quase instantaneamente de uma reação contrária de culpa, vergonha, humilhação e talvez até auto-repulsão.

Para entender como essa situação conflituosa poderia afetar plausivelmente a fiação geral de um indivíduo, vamos imaginar um dos experimentos de B.F. Skinner com ratos, apesar disso ser mais perverso do que o padrão. Em nosso novo experimento, o rato recebe os primeiros estímulos através de, vejamos, aquele traje de colegial da Britney Spears, que nós mencionamos lá atrás. Assim estimulado, nosso roedor é condicionado a responder, pressionando a alavanca-pornô para conseguir a recompensa necessária de liberação sexual. Uma vez que essa recompensa seja recebida, contudo, nosso rato sofrerá um potente choque elétrico de vergonha. Logo, recompensa e punição tornam-se perversamente associadas. A única rota para o prazer envolve dor e humilhação. Você supõe que este tratamento, aplicado milhões de vezes a populações inteiras de roedores de todos os lugares, teria um efeito benéfico ou prejudicial na saúde mental destas criaturas?

Com seres humanos nas caixas Skinner de nossa sexualidade, socialmente construídas, não seria exagero sugerir que certos indivíduos são desse modo privados do escape que procuram, incapazes de aceitar a vergonha e o desgosto que o acompanham. Estendido a toda uma sociedade, isso significa que a tampa da panela de pressão está seguramente fechada, enquanto que a válvula de escape não funciona como na Holanda, Espanha ou Dinamarca. Conseqüentemente, estamos sujeitos a explosões mais freqüentes e desastrosas no setor sexual; erupções feias na vida real, por aquilo que deveria ter sido uma fantasia inofensiva. A situação exclusa da pornografia parece conduzir algumas pessoas a um isolamento sombrio e claustrofóbico, onde seus sonhos sexuais podem se tornar algo escuro e perigoso que não é vantagem para ninguém - nem para elas mesmas, suas vítimas ou para a sociedade. Pior ainda, em culturas sexualmente restritivas, onde a pornografia é vista como catalisadora do crime sexual (e não como provedora de uma válvula de escape que poderia preveni-lo), a resposta instintiva é quase certamente uma nova tentativa de ameaçar a tampa da panela de pressão.

Aonde isso tudo nos deixa, e aonde isso deixa a pornografia? Com cada novo avanço tecnológico desde William Caxton, parecia que a pornografia havia proliferado e ao mesmo tempo degradado em qualidade. A sociedade de hoje, graças à internet e a outros fatores, está inteiramente saturada do erótico mais básico e rudimentar: pornografia culposa, para populações culposas que escorregam pelos refeitórios da vida, sem outras opções além da lavagem que recebem.  O pornô está em toda parte, assim como estava na Grécia antiga, mas em nenhum lugar ele é arte. Em nenhum lugar ele é uma afirmação de humanidade comum, do jeito que era na cultura clássica; ao contrário, ele afirma apenas nossa alienação e distância um do outro e, apesar de sua disponibilidade massiva, não parece nos tornar nem um pouco mais felizes.  

Mais do que funcionar como escape para nossa imaginação sexual bastante prosaica, o pornô funciona como mais uma coleira social – isca, arreio, e chicote combinados em uma coisa só - uma espora de gado que parece ser somente uma cenoura. Balançando tentadoramente à nossa frente, em todos os lugares pelos quais nos conduz. Depois, durante a conseqüência culposa de nossas indulgências, se converte convenientemente em um bastão de vergonha com o qual nos autoflagelamos.

Isso é especialmente verdade nos Estados Unidos, enquanto atravessa sua era Georgiana; apesar da  influência irracional que a Inglaterra vitoriana teve sobre o mundo no século dezenove, as repercussões de uma presidência americana que se baseia na fé são sentidas em todo o globo. São sentidas em termos de seus efeitos na política internacional, nas ciências, artes e em como pensamos nossa sexualidade e seus direitos. Imerso em ciber-pornô e em pornô promocional, o aquecimento sexual na sociedade está mais alto do que nunca, com o ponteiro do termostato alarmantemente marcando o vermelho, ainda que neste ponto da história estejamos governados por uma mentalidade que é programada para responder reprimindo a válvula de escape, a pornografia.  Aniquile a pornografia – essa parece ser a idéia - e assim nós teremos, de alguma maneira, aniquilado todas as forças que inicialmente nos motivaram a esculpir a Vênus do Pântano, antes de qualquer coisa.  

Claramente, a erradicação da pornografia nunca acontecerá. O pornô está conosco desde nosso passado Paleolítico e, com toda a probabilidade, estará conosco até que tenhamos sucesso em varrer nossa espécie do planeta.  O movimento "Não ao pornô", portanto, não é uma opção realística. Advirto que a única escolha que nós genuinamente temos é entre a pornografia boa e a pornografia ruim. Isso obviamente pede um punhado de questões, a primeira delas sendo como diferenciar uma da outra. Apenas para fins de argumentação, vamos definir o pornô 'bom', segundo o bom juiz Clayton Horn, como aquele que possui benefício social notável. É claro, isso levanta uma questão ainda maior, a saber, o pornô 'bom' existe, afinal? Se não existe, poderia possivelmente existir em algum momento do futuro, e como ele seria, se existisse?

Para responder isso, poderíamos fazer mais do que referir àquelas poucas vozes femininas dissidentes que se levantaram, à época em que o debate feminista acerca da pornografia estava em seu momento mais quente e, talvez, mais inteligente. Tomando inspiração do influente ensaio Must We Burn Sade? (Devemos Queimar Sade?, 1955) de Simone de Beauvoir, bem como das maravilhosas e muito saudosas musas pornôs de Angela Carter em seu livro The Sadeian Women (As mulheres sadianas, 1978), no qual ela finalmente declara que pode haver uma forma de pornografia ainda não descoberta, gloriosa e libertadora, imaculada das diferenças de sexo e de sexualidade que o passado determinou. Mesmo a mais inflexível e estridente crítica feminista do pornô, Andrea Dworkin, admitiu que a pornografia benigna pode ser concebível, apesar de ela considerar tal coisa altamente improvável. Sabendo que nós não queremos 'pornografia ruim' e que não podemos ter 'nenhuma pornografia', é nesta mera sugestão da possibilidade de 'pornografia boa' que um raio de luz incide em um debate intratável.

Contudo, ainda temos a questão de como exatamente a pornografia pode influenciar a sociedade beneficamente. Se não conseguimos imaginar tal situação, então como a reconheceríamos se ela acontecesse? Mesmo que fizéssemos coro com Andrea Dworkin, Angela Carter, Kathy Acker e Simone de Beauvoir, afirmando a possibilidade de nosso hipotético pornô 'bom', isso não nos ajuda muito, a menos que tenhamos uma idéia clara de exatamente qual pornografia boa, benéfica e do tipo certo poderia funcionar em nossa cultura.

Nós já observamos que em lugares como Dinamarca, Espanha ou Holanda o pornô parece agir como uma válvula de escape, descarregando pressões sexuais inofensivamente, antes que elas possam explodir em crime ou abuso sexual. Notamos também que isso não parece funcionar em culturas mais restritivas, onde culpa e vergonha reflexivas parecem acompanhar a própria noção de pornografia. E se fosse possível conduzir a nossa pornografia a um tal grau artístico que essa associação imediata entre erotismo e humilhação social aguda fosse fragmentada? Poderia a pornografia ser permitida, desse modo, a funcionar como funciona em climas mais iluminados, reduzindo nossa pontuação alarmante de homens e mulheres verdadeiramente marcados e violentados, crianças verdadeiramente estupradas, mortas e jogadas em um canal? Isso não é algo que, no mínimo, vale uma tentativa?


Se pudesse ser artisticamente expressa desta maneira, a pornografia poderia recepcionar nossa imaginação sexual, tirando-a do frio para o calor confortante da aceitação sociopolítica. O poder da arte é tal que nos permite ver, no trabalho de outra pessoa, uma idéia que fracamente formamos, mas sem habilidade de realizar ou conduzir; desta maneira, é capaz de fazer-nos sentir menos sozinhos. A pornografia como a concebemos hoje, entretanto, opera o oposto. Não é arte, não pode ser admirada abertamente ou discutida e presta-se apenas a nos convencer de nosso isolamento, para aumentar a noção de que estamos sozinhos em nossos desejos secretos e mais íntimos – exceto pela companhia fétida de outros onanistas perspirantes e pervertidos, ou, ainda, de desajustados sociais.

Se pudéssemos redefinir o erótico, restaurá-lo a um venerado local na arte, ao qual ele estivera acostumado, poderíamos resolver uma série de tensões pessoais e sociais no que se refere ao sexo, que muito parece ter se acabado ao nascer da civilização ocidental. Reconhecida apropriadamente, a pornografia poderia nos oferecer uma arena segura para discutir ou ventilar idéias que, do contrário, passariam despercebidas e poderiam amadurecer e inflamar somente em nossa escuridão individual. Nossa imaginação sexual é e sempre foi central em nossas vidas, como indivíduos ou como espécie, e nossa cultura poderia ser muito enriquecida – ou, no mínimo, mais relaxada – se reconhecêssemos isso. Não haveria mais nenhuma pornografia divina concebida por um futuro William Blake a ser incinerada depois de sua morte, nenhum futuro Aubrey Beardsley assustado em seu leito de morte e ofegando para que seu melhor trabalho seja destruído. Nenhum decadente afetado ou Beat barbudo compelido a se recolher por trás de um pseudônimo ou a contribuir com a prolífica obra do ‘Anônimo’.

Assim enobrecida, a pornografia poderia outra vez tomar seu lugar no totem reverenciado e quase sagrado da sociedade, poderia ser totalmente restituída às suas origens com a garota pião aerada de Willendorf. Parece que temos apenas duas escolhas quanto ao modo como tratamos nossos próprios sonhos eróticos: aceitá-los e restituir a Vênus do Pântano a seu lugar natural e apropriado na cultura ou rejeitá-los e tentar estigmatizá-los, anexando um estímulo à vergonha, culpa e dor condicionadas há longa data, de modo que possamos conter nossa sexualidade com um anel peniano alemão do século dezenove, de pregos bem pontudos. Finalmente, a pornografia está nas mãos de pessoas individuais, artistas individuais, escritores, diretores de filmes ou poetas. Se eles tiverem a audácia de fixar suas bandeiras neste terreno desprezado e perigoso, apesar de sua natureza desagradável, então a selva inanimada poderia ser transformada, a tempo, em um jardim perfumado de valor durável. O erótico poderia ser elevado de sua categoria atual de uma prostituta que todo mundo mantém acorrentada em seu porão, mas da qual ninguém fala a respeito - não mencionada, mas disponível – para recuperar sua posição anterior, de deusa. 

Poderíamos descobrir que ela mudou um pouco desde suas origens volumosas em pedra calcárea, descobrir que agora ela se assemelha a algo mais de acordo com as linhas retratadas pelo magnífico Félicien Rops, em Pornocrates. Este trabalho soberbo iniciado por Rops no final da década de 1870, retrata o próprio espírito da pornografia, uma belíssima mulher vista de perfil, caminhando vagarosamente da direita para a esquerda da imagem, vestida apenas por seus calçados, luvas, meias, jóias, uma faixa na cintura e, completando, um chapéu Gainsborough 18.

Há flores pálidas no cabelo dela e igualmente pálida é a venda amarrada em seus olhos. Preso em uma coleira de laço decorado, como se fosse um poodle bem tosado,  está um porquinho que parece conduzir essa beldade sem visão, como um cão-guia. Em  passo digno e sóbrio, ele percorre por sua dama cega aquilo que pode ser apenas um rodapé decorativo da figura, mas que se parece com o ornamento em pedras de um muro ou elevação, ao longo da superfície pela qual o elegante espírito encarnado da pornografia vitoriana é conduzido, por um suíno fungante: um suíno à frente da Pérola

Um friso em relevo acompanha o muro, ou o topo do rodapé, retratando efígies das belas artes, simbolizadas com seu pergaminho, alaúde ou tripés e, ainda, abaixando suas cabeças, olhando envergonhadas para outro lado, enquanto a deusa da pornografia desfila audaciosamente sobre elas. Similarmente, suspensos no ar à frente da dama, conforme ela anda, observamos três querubins angustiados, arrancando os próprios cabelos enquanto reprovam tal exibição lasciva. Por trás de sua venda, inconsciente de sua aparência e corretamente desinteressada pela controvérsia que está causando, totalmente despreocupada ao longo do precipício em que pisa, a essência voluptuosa da pornografia está calma, serena. Ela confia sua segurança a um animal convencionalmente visto como protótipo da sujeira e do instinto bestial, ainda que sua limpeza e inteligência aguda sejam largamente mencionadas. A deusa caminha ao longo de seu muro, orgulhosa e segura em sua convicção de que ela é um ser que inspira adoração, protegida pela compreensão de que seguindo o impulso de seu nobre – ainda que muito desprezado – animal, será precisamente guiada a seu legítimo destino majestático.

Desinibida e cega para todas as vaidades que se sentiram ultrajadas com sua presença, Vênus marcha ao longo da linha estreita da moral em sua trilha, caminhando junto ao porco com firmeza e invulnerável em seu charme enquanto vaga, passo a passo, em direção ao ansiado brilho de um futuro mais humano e iluminado.                          



¹ Referência e sátira ao visual e música góticos (Goths > gothics) contemporâneos (nota da tradutora).
² blood-eagle, método viking de tortura e execução em que as costelas da vítima são cortadas perto da coluna e posteriormente abertas num formato que lembra as asas de uma águia (N.T.).
³ Aos nomes das prostitutas da lista, seguiam-se comentários, características ou conselhos referentes às moças. Ao nome Lucy P-t-rson, lia-se: "as lewd as goats and monkeys…    a vile bitch" (N.T.).
4 Referente a Marquês de Sade (Donatien Alphonse-François de Sade), filósofo e escritor francês (N.T.)
5 Home hints, publicação que veiculava dicas domésticas para donas de casa (N.T.)
6 Old Labour, principal partido trabalhista de esquerda do Reino Unido (N.T.)
7 Referência à Greve de 1888 em Londres, em que funcionárias da fábrica de fósforos “Bryant e May” protestaram contra suas condições de trabalho (N.T.)
8 Algo como “Horrivelmente Esquisitinho“, trocadilho com a pronúncia do nome do artista (N.T.).
9 O nome Savoy faz referência à grandiosidade e vanguarda do hotel londrino homônimo (N.T.)
10 No original, saucy seaside postcards, cartões que as pessoas podiam enviar pelo serviço postal, cujas ilustrações (de nomes como McGill) traziam personagens estereotipadas (padres, maridos, mulheres gordas, colegiais...) se insinuando em situações de duplo-sentido. (N. T.).
11 Bíblias de Tijuana, oito-páginas, ou, como ficaram conhecidos no Brasil, ‘catecismos’ (N. T.).
12 nudie-cutie, filmes que combinavam o burlesco com cenas de nudez gratuitas, sem grandes roteiros; um termo antigo para o que hoje conhecemos como filme pornô. (N.T.).
13 No original, “authentic queers and phony virgins” (N.T.)
14 Na música "My Ding a Ling", do álbum The London Chuck Berry Sessions, 1972 (N.T.)
15 Na música "Walk on the Wild Side", do álbum Transformer, 1972 (N.T.)
16 Na música "Wannabe", do álbum Spice, 1996 (N.T.).
17 French United Connection Kingdom <=> FUCK. (N.T.).
18 Chapéu Gainsborough, um tipo de chapéu que se assemelha aos chapéus pintados por Thomas Gainsborough, artista inglês. (N.T.).